terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Carlos Spurgeon O príncipe dos pregadores (1834-1892)


Carlos Spurgeon

 O príncipe dos pregadores

(1834-1892)

No período da Inquisição, na Espanha, sob o reinado do imperador Carlos V, um número elevadíssimo de crentes foram queimados em praça pública ou enterrados vivos. O filho de Carlos V, Filipe II, em 1567, levou a perseguição aos Países Baixos, declarando que ainda que lhe custasse mil vezes a sua própria vida,limparia todo o seu domínio do "protestantismo". Antes da sua morte gabava-se ter mandado ao carrasco, pelo menos, 18.000 "hereges".

Ao começar esse reinado de terror nos Países Baixos, muitos milhares de crentes fugiram para a Inglaterra. En­tre os que escaparam do "Concilio de Sangue", encontra­va-se a família Spurgeon.

Na Inglaterra, o povo de Deus, contudo, não estava li­vre de toda a perseguição "passando a maior parte do tem­po sentado, por se achar fraco demais para se deitar". Os bisavôs de Carlos eram crentes fervorosos, criando os filhos na admoestação do Senhor. Seu avô paterno, depois de quase cinqüenta anos de pastorado no mesmo lugar, podia dizer: "Não passei nem uma hora triste com a minha igreja depois que assumi o cargo de pastor!" O pai de Carlos, Tiago Spurgeon, era o amado pastor de Stambourne.

Carlos, quando ainda criança, interessava-se pela lei­tura de "O Peregrino", pela história dos mártires e por di­versas obras de teologia. É impossível calcular a influência dessas obras sobre a sua vida.

Que era precoce nas coisas espirituais, vê-se no seguin­te acontecimento: Apesar de criança de apenas cinco anos de idade, sentiu profundamente o cuidado do avô, por cau­sa do procedimento de um dos membros da igreja, chama­do "Velho Roads". Certo dia, Carlos, a criança, encontran­do Roads em companhia de outros fumando e bebendo cer­veja, dirigiu-se a ele, dizendo: "Que fazes aqui, Elias?" O "Velho Roads" arrependido, contou, então, ao seu pastor, como a princípio se irou com a criança, mas por fim ficou quebrantado. Desde aquele dia, o "Velho Roads" andou sempre perto do Salvador.

Quando Carlos era ainda pequeno, foi por Deus con­vencido do pecado. Durante alguns anos sentia-se uma criatura sem esperança e sem conforto; visitava um lugar de culto após outro, sem conseguir saber como podia li­vrar-se do pecado. Então, quando tinha quinze anos de idade, aumentou nele o desejo de ser salvo. E aumentou de tal forma, que passou seis meses agonizando em oração. Nesse tempo assistiu a um culto numa igreja; nesse dia, o pregador não fora ao culto, por causa duma grande tem­pestade de neve. Na falta do pastor, um sapateiro se levan­tou para pregar às poucas pessoas presentes, e leu este tex­to: "Olhai para mim e sede salvos, todos os confins da ter­ra" (Isaías 45.22). O sapateiro, inexperiente na arte de pre­gar, podia apenas repetir a passagem e dizer: "Olhai! Não vos é necessário levantar um pé, nem um dedo. Não vos é necessário estudar no colégio para saber olhar; nem contri­buir com mil libras. Olhai para mim, não para vós mes­mos. Não há conforto em vós. Olhai para mim, suando grandes gotas de sangue. Olhai para mim, pendurado na cruz. Olhai para mim, morto e sepultado. Olhai para mim, ressuscitado. Olhai para mim, à direita de Deus". Em se­guida, fitando os olhos em Carlos, disse: "Moço, tu pareces ser miserável. Serás infeliz na vida e na morte se não obedeceres". Então gritou ainda mais: "Moço, olha para Je­sus! Olha agora!" O rapaz olhou e continuou a olhar, até que por fim, um gozo indizível entrou na sua alma.

O recém-salvo, ao contemplar o constante zelo do Ma­ligno, foi tomado pela aspiração de fazer todo o possível para receber o poder divino, para frustrar a obra do inimigo do bem. Spurgeon aproveitava todas as oportunidades para distribuir folhetos. Entregava-se de todo o coração a ensinar na Escola Dominical, onde alcançou, de início, o amor dos alunos e, por intermédio desses a presença dos pais na escola. Com a idade de dezesseis anos começou a pregar. Acerca desse fato ele disse: "Quantas vezes me foi concedido o privilégio de pregar na cozinha duma casa de agricultor, ou num celeiro!"

Alguns meses depois de pregar seu primeiro sermão, foi chamado a pastorear a igreja em Waterbeach. Ao fim de dois anos, essa igreja de quarenta membros, passou a ter cem. O jovem pregador desejava educar-se e o diretor duma escola superior, que estava de visita à cidade, mar­cou uma hora para tratar com ele acerca desse assunto. A criada, porém, que recebeu Carlos, por descuido, não cha­mou o professor e este saiu sem saber que o moço o espera­va. Depois, Carlos, já na rua, um tanto triste, ouviu uma voz dizer-lhe: "Buscas grandes coisas para ti? Não as bus­ques!" Foi então , ali mesmo que abandonou a idéia de es­tudar nesse colégio, convencido de que Deus o dirigia para outras coisas. Não se deve concluir, contudo, que Carlos Spurgeon resolveu não se educar. Depois disso, ele apro­veitava todos os momentos livres para estudar. Diz-se que alcançou fama de ser um dos homens mais instruídos de seu tempo.

Spurgeon havia pregado em Waterbeach apenas du­rante dois anos quando foi chamado a pregar na Park Street Chapei, em Londres. O local era inconveniente para os cultos, e o templo, que tinha assentos para mil e duzen­tos ouvintes, era demasiado grande para os auditórios. Contudo, "havia ali um grupo de fiéis que nunca cessaram de rogar a Deus um glorioso avivamento". Este fato é as­sim registrado nas palavras do próprio Spurgeon: "No iní­cio, eu pregava somente a um punhado de ouvintes. Con­tudo, não me esqueço da insistência das suas orações. Às vezes parecia que rogavam até verem realmente presente o Anjo do Concerto (Cristo), querendo abençoá-los. Mais que uma vez nos admiramos com a solenidade das orações até alcançarmos quietude, enquanto o poder do Senhor nos sobrevinha... Assim desceu a bênção, a casa se encheu de ouvintes e foram salvas dezenas de almas!"

Sob o ministério desse moço de dezenove anos, a con­corrência aumentou em poucos meses a ponto de o prédio não mais comportar as multidões; centenas de ouvintes permaneciam na rua para aproveitar as migalhas que caíam do banquete que havia dentro da casa.

Foi resolvido reformar a New Park Street Chapei e, du­rante o tempo da obra, realizavam-se os cultos em Exeter Hall, prédio que tinha assentos para quatro mil e quinhen­tos ouvintes. Aí, em menos que dois meses, os auditórios eram tão grandes, que as ruas, durante os cultos, se torna­vam intransitáveis.

Quando voltaram para a Chapei, o problema, em vez de ser resolvido, era maior; três mil pessoas ocupavam o espaço preparado para mil e quinhentas! O dinheiro gasto, que alcançou uma elevada quantia, fora desperdiçado! Tornou-se necessário voltar para o Exeter Hall.

Mas nem o Exeter Hall comportava mais os auditórios e a igreja tomou uma atitude espetacular - alugou o Surrey Music Hall, o prédio mais amplo, imponente e magnífico de Londres, construído para diversões públicas.

As notícias, de que os cultos passaram do Exeter Hall para Surrey Music Hall, eletrificaram toda a cidade de Londres. O culto inaugural foi anunciado para a noite de 19 de outubro de 1856. Na tarde do dia marcado, milhares de pessoas para lá se dirigiram para achar assento. Quan­do, por fim, o culto começou, o prédio no qual cabiam 12.000 pessoas, estava superlotado e havia mais 10.000 fora que não puderam entrar.

No primeiro culto em Surrey Music Hall, notaram-se vestígios da perseguição que Spurgeon tinha de encarar.Ele estava orando, e depois da leitura das Escrituras, os inimigos da obra de Deus se levantaram, gritando: 'Togo! Fogo!" Apesar de todos os esforços de Spurgeon e de outros crentes, a grande massa de gente alvoroçou-se e movimen­tou-se em pânico, de tal modo que sete pessoas morreram e vinte e oito ficaram gravemente feridas. Depois que tudo serenou, acharam-se espalhados em toda a parte do pré­dio, roupas de homens e senhoras; chapéus, mangas de vestidos, sapatos, pernas de calças, mangas e paletós, xales, etc., objetos esses que os milhares de pessoas aflitas deixaram, na luta para escapar do prédio. Spurgeon com­portou-se com a maior calma durante todo o tempo da in­descritível catástrofe, mas depois passou dias prostrado, sofrendo em conseqüência do tremendo choque.

As notícias sobre as trágicas ocorrências durante o pri­meiro culto em Surrey Music Hall, em vez de prejudica­rem a obra, concorreram para aumentar o interesse pelos cultos. De um dia para outro Spurgeon, o herói do Sul de Londres, tornou-se um vulto de projeção mundial. Aceitou convites para pregar em cidades da Inglaterra, Escócia, Ir­landa, Gales, Holanda e França. Pregava ao ar livre e nos maiores edifícios, em média oito a doze vezes por semana.

Nesse tempo, quando ainda moço, revelou como conse­guia entender, nas Escrituras, os textos difíceis, isto é, simplesmente pedia a Deus: - "Ó Senhor, mostra-me o sentido deste trecho!" E acrescentou: "É maravilhoso como o texto, duro como a pederneira, emite faíscas quan­do batido com o aço da oração." Quando mais velho, disse: "Orar acerca das Escrituras, é como pisar uvas no lagar, trilhar trigo na eira, ou extrair ouro do minério."

Acerca da vida familiar, Susana, a esposa de Spurgeon, assim escreveu: "Fazíamos culto doméstico, quer hospeda­dos em um rancho nas serras, quer num suntuoso quarto de hotel na cidade. E a bendita presença de Cristo, que muitos crentes dizem impossível alcançar, era para ele a atmosfera natural; ele vivia e respirava nele (em Deus).

Antes de iniciar a construção do famoso templo em Londres, o Metropolitan Tabernacle, Spurgeon, com al­guns dos seus membros, se ajoelharam no terreno entre as pilhas de materiais e rogaram a Deus que não permitisse que trabalhador algum morresse ou ficasse ferido durante a execução das obras de construção. Deus respondeu mara­vilhosamente, não deixando acontecer qualquer acidente durante o tempo da construção do imponente edifício que media oitenta metros de comprimento, vinte e oito de lar­gura e vinte de altura.

A igreja começou a edificar o tabernáculo com o alvo de liquidar todas as dívidas de materiais e pagar toda a mão-de-obra antes de findar a construção. Como de costume, pediram a Deus que os ajudasse a realizar esse desejo, e tudo foi pago antes do dia da inauguração.

"O Metropolitan Tabernacle foi acabado em março de 1861. Durante os trinta e um anos que se seguiram, uma média de 5.000 pessoas se congregavam ali todos os domin­gos, pela manhã e à noite. De três em três meses Spurgeon pedia aos que haviam assistido neste período, que se au­sentassem. Eles assim faziam, porém, o tabernáculo era superlotado por outras pessoas das massas ainda não al­cançadas pela mensagem."

Durante certo período, pregou trezentas vezes em doze meses. O maior auditório, no qual pregou, foi no Crystal Palace, Londres, em 7 de outubro de 1857. O número exato de assistentes era de 23.654. Spurgeon esforçou-se tanto nessa ocasião, e o cansaço foi tal, que após o sermão da noi­te de quarta-feira, dormiu até a manhã de sexta-feira!

Todavia, não se deve julgar que era somente no púlpito que a sua alma ardia pela salvação dos perdidos. Também se ocupava grandemente no evangelismo individual. Nesse sentido citamos aqui o que certo crente disse a respeito de­le: "Tenho visto auditórios de 6.500 pessoas inteiramente levadas pelo fervor de Spurgeon. Mas ao lado de uma criança moribunda, que ele levara a Cristo, achei-a mais sublime do que quando dominava o interesse da multi­dão".

Parece impossível que tal pregador tivesse tempo para escrever. Entretanto os livros da sua autoria, constituem uma biblioteca de cento e trinta e cinco tomos. Até hoje não há obra mais rica de jóias espirituais do que a de Spur­geon, de sete volumes sobre os Salmos: "A Tesouraria de Davi". Ele publicou tão grande número de seus sermões,que, mesmo lendo um por dia, nem em dez anos o leitor os poderia ler todos. Muitos foram traduzidos em várias línguas e publicados nos jornais do mundo inteiro. Ele mesmo escrevia grande parte da matéria para seu jornal, "A Espada e a Colher", título este sugerido pela história da construção dos muros de Jerusalém no tempo angustioso de Neemias.

Além de pregar constantemente a grandes auditórios e de escrever tantos livros, esforçou-se em vários outros ra­mos de atividades. Inspirado pelo exemplo de Jorge Müller, fundou e dirigiu o orfanato de Stockwell. Pediam a Deus e recebiam o necessário para levantar prédio após prédio e alimentar centenas de crianças desamparadas.

Reconhecendo a necessidade de instruir os jovens cha­mados por Deus a proclamar o Evangelho, e, assim, alcan­çar muito maior número de perdidos, fundou e dirigiu o Colégio dos Pastores, com a mesma fé em Deus que mos­trou na obra de cuidar dos órfãos.

Impressionado pela vasta circulação de literatura vicio­sa, formou uma junta de vendagem de livros evangélicos. Dezenas de vendedores foram sustentados e milhares de discursos feitos, além de muitas toneladas de Escrituras e outros livros vendidos de casa em casa.

Acerca de tão estupendo êxito na vida de Spurgeon, convém notar o seguinte: Nenhum dos seus antepassados alcançou fama. Sua voz podia pregar às maiores multi­dões, mas outros pregadores sem fama gozavam também da mesma voz. O Príncipe dos Pregadores era, antes de tu­do, O Príncipe de Joelhos. Como Saulo de Tarso, entrou no Reino de Deus, também agonizando de joelhos. No caso de Spurgeon, essa angústia durou seis meses. Depois (assim aconteceu com Saulo) a oração fervorosa era um hábito na sua vida. Aqueles que assistiam aos cultos no grande Ta-bernáculo Metropolitano diziam que as orações eram a parte mais sublime dos cultos.

Quando alguém perguntava a Spurgeon a explicação do poder na sua pregação, O Príncipe de Joelhos apontava para a loja que ficava sob o salão do Metropolitan Taber­nacle e dizia: "Na sala que está embaixo, há trezentos crentes que sabem orar. Todas as vezes que prego eles se reúnem ali para sustentar-me as mãos, orando e suplican­do ininterruptamente. Na sala que está sob os nossos pés é que se encontra a explicação do mistério dessas bênçãos."

Spurgeon costumava dirigir-se aos alunos no Colégio dos Pastores desta forma: "Permanecei na presença de Deus!... Se o vosso fervor esfriar, não podereis orar bem no púlpito... pior com a família... e ainda pior nos estudos, so­zinhos. Se a alma se tornar magra, os ouvintes, sem sabe­rem como ou por quê, acharão que vossas orações públicas têm pouco sabor."

Ainda sobre a oração, sua esposa deu este testemunho: "Ele dava muita importância à meia-hora de oração que passava com Deus antes de começar o culto." Certo crente também escreveu a esse respeito: "Sente-se, durante a sua oração pública, que ele é um homem de bastante força para levar nas mãos ungidas as orações duma multidão. Isto é a idéia mais grandiosa, de sacerdote entre Deus e os homens".

Convicto do grande poder da oração, Spurgeon desig­nou o mês de fevereiro, de cada ano, no Grande Taberná­culo, para realizar a convenção anual e fazer súplicas por um avivamento na obra de Deus. Nessas ocasiões, passa­vam dias inteiros em jejum e oração, oração que se tornava mais e mais fervorosa. Não só sentiam a gloriosa presença do Espírito Santo nesses cultos, mas era-lhes aumentado o poder com frutos abundantes.

Na sua autobiografia, desde o começo do seu ministério em Londres, consta que pessoas gravemente enfermas fo­ram curadas em resposta às suas orações.

A vida de Spurgeon não era vida egoísta e de interesse próprio. Juntamente com sua esposa, fez os maiores sa­crifícios para colocar livros espirituais nas mãos de um grande número de pregadores pobres e ambos contribuíam constantemente para o sustento das viúvas e órfãos. Rece­biam grandes somas de dinheiro, mas davam tudo para o progresso da obra de Deus.

Não buscava fama nem a honra de fundador de outra denominação, como muitos amigos esperavam. A sua pre­gação nunca foi feita para sua própria glória, porém tinha como alvo a mensagem da Cruz, para levar os ouvintes a Deus. Considerava seus sermões como se fossem setas e dava todo o seu coração, empregava toda a sua força espi­ritual em produzir cada um. Pregava confiando no poder do Espírito Santo, empregando o que Deus lhe concedera para "matar" o maior número de ouvintes.

"Carlos Hadon Spurgeon recebia o fogo do Céu, estu­dando a Bíblia, horas a fio, em comunhão com Deus."

Cristo era o segredo do seu poder. Cristo era o centro de tudo, para ele; sempre e unicamente Cristo.

J. P. Fruit disse: "Quando Spurgeon orava, parecia que Jesus estava em pé ao seu lado."

As suas últimas palavras, no leito de morte, dirigidas à sua esposa, foram: "Oh! querida, tenho desfrutado um tempo mui glorioso com meu Senhor!" Ela, ao ver, por fim, que seu marido passaria para o outro lado, caiu de joe­lhos e com lágrimas exclamou. "Oh! bendito Senhor Jesus, eu te agradeço o tesouro que me emprestaste no decurso destes anos; agora Senhor, dá-me força e direção durante todo o futuro."

Seis mil pessoas assistiram ao culto de funeral. No cai­xão estava uma Bíblia aberta, mostrando este texto usado por Deus para convertê-lo: "Olhai para mim, e sede salvos, todos os confins da terra."

O cortejo fúnebre passou entre centenas de milhares de pessoas postadas em pé nas calçadas; os homens des­cobriam-se à passagem do cortejo e as mulheres choravam.

O túmulo simples do célebre Príncipe dos Pregadores, no cemitério de Norwood, testifica da verdadeira grandeza da sua vida. Ali estão gravadas estas humildes palavras:


Aqui jaz o corpo de
CARLOS HADON SPURGEON
esperando o aparecimento do seu
Senhor e Salvador
JESUS CRISTO

(extraido do livro hérois da fé)

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Hudson Taylor (1832-1905 )O pai das missões no interior da China



Hudson Taylor



O pai das missões no interior da China

(1832-1905)
Tiago Taylor tinha-se levantado cedo de madrugada. Chegara por fim o auspicioso e anunciado dia de seu casa­mento; o moço ocupava-se em arrumar tudo para receber a noiva na casa que iam ocupar. Enquanto trabalhava, esta­va meditando sobre as ocorrências recentes na aldeola.

Duas famílias, a dos Cooper e a dos Shaw, converte­ram-se e convidaram João Wesley a pregar na feira. O ve­lho discursou sobre "a ira vindoura" de tal maneira, que o povo desistiu da amarga perseguição, deixando o intrépido pregador hospedar-se na casa do senhor Shaw.

Enquanto Tiago preparava a casa para a chegada da noiva, ouvia-se a voz da vizinha, a senhora Shaw, cantan­do. Lembrou-se de como ela, meses antes, passava todo o tempo acamada, gemendo dia após dia por causa do reu­matismo que a deixara aleijada. Mas quando "confiou no Senhor", como disse, para a cura imediata, grande foi a transformação. E indizível foi a surpresa do marido ao vol­tar a casa: a esposa não somente estava curada e de pé, mas estava varrendo a cozinha!Tiago Taylor odiava a religião. Ainda mais: esse era o dia em que se ia casar. Depois do casamento iam dançar e beber como se fazia em tais ocasiões. Mas não podia livrar-se das palavras, talvez ouvidas do sermão do pregador: "Porém eu e a minha casa serviremos ao Senhor."

Sim, ia ter uma esposa e assumir as responsabilidades de marido e de pai de família. Grande tinha sido seu des­cuido. Resolvido, então, a entrar seriamente na vida de ca­sado, começou a repetir as palavras: "Serviremos ao Se­nhor!"

As horas se passavam. O sol subia mais e mais sobre as casas cobertas de neve. Mas o jovem Tiago, esquecido de tudo que é material, e tomado pela realidade das coisas eternas, permaneceu de joelhos, face a face com Deus. O amor do Salvador, por fim, venceu o seu coração e Tiago Taylor levantou-se com a alma cheia do Senhor Jesus.

Podemos imaginar como os sinos dobraram, como a noiva e os convivas se impacientaram, nesse dia. Já havia passado a hora para o culto de casamento quando o jovem despertou do enlevo com Deus e se levantou da oração. De­pois de vestir-se, venceu rapidamente os três quilômetros até o vilarejo de Royston.

Sem perderem tempo em perguntar ao rapaz a razão de tanto atraso, realizou-se o culto, e Tiago e Elisabete saí­ram da igreja, casados. O jovem não vacilou, mas ao sair contou tudo acerca da sua conversão, ao ouvido de Bete. Ao ouvir o que ele relatava, ela exclamou em tom de deses­pero: "Casei-me, então, com um desses metodistas!"

Não houve dança nesse dia; a voz e o violino do noivo foram usados para glorificar o Mestre. Bete, apesar de sa­ber em seu coração que Tiago tinha razão, continuou a re­sistir e a queixar-se dia após dia. Então, certo dia, quando se mostrava ainda mais contrariada, o robusto Tiago le­vantou-a nos braços e a levou para o quarto, onde se ajoe­lhou ao seu lado, derramando a sua alma em oração por ela. Comovida pela profundeza da mágoa e cuidado que Tiago sentia por sua alma, ela começou a sentir também seu pecado e, no dia seguinte, de joelhos, ao lado do mari­do, Elisabete Taylor clamou a Deus, renunciando a vaida­de do mundo e entregando-se a Cristo.É, assim, com os bisavós, que começa a verdadeira bio­grafia do herói da fé, Hudson Taylor. Os avós e os pais, na mesma ordem, criaram seus filhos no mesmo temor de Deus.

Num memorável dia, antes do nascimento de Hudson, o primogênito da família, o pai procurou a sua esposa para conversar sobre uma passagem das Escrituras que o im­pressionava profundamente. Na sua Bíblia leu para ela uma parte dos capítulos 13 de Êxodo e 3 de Números: "Santifica-me todo o primogênito... Todo o primogênito meu é... Meus serão... Apartarás para o Senhor..."

Os dois conversaram muito tempo sobre o gozo que es­peravam ter. Então, de joelhos, entregaram seu primogêni­to ao Senhor, pedindo que desde já ele o separasse para a sua obra.

Tiago Taylor, o pai de Hudson, não somente orava fer­vorosamente por seus cinco filhos, mas ensinou-os a pedi­rem detalhadamente a Deus todas as coisas. Ajoelhados, diariamente, ao lado da cama, o pai colocava o braço ao re­dor de cada um enquanto orava insistentemente por ele. Desejava que cada membro da família passasse, também, ao menos meia hora, todos os dias, perante Deus, renovan­do a alma por meio de oração e estudo das Escrituras.

A porta fechada do quarto da sua mãe, diariamente ao meio-dia, apesar das suas constantes e inumeráveis obri­gações, tinha também grande influência sobre todos, pois sabiam que ela, assim, se prostrava perante Deus para re­novar suas forças e para que o próximo se sentisse atraído ao Amigo invisível que habitava nela.

Não é de admirar, portanto, que, ao crescer, Hudson se consagrasse inteiramente a Deus. O grande segredo do seu incrível êxito é que em tudo que carecia, no sentido espiri­tual ou material, recorria a Deus e recebia dos tesouros in­finitos.

Contudo, não devemos julgar que a mocidade de Hud­son Taylor fosse isenta de grandes lutas. Como acontece com muitos, o moço chegou à idade de dezessete anos sem reconhecer Cristo como seu Salvador. Acerca disso ele es­creveu mais tarde:"Pode ser coisa estranha, mas sou grato pelo tempo que passei no ceticismo. O absurdo de crentes que professam crer na Bíblia enquanto se comportam justamente como se não existisse tal livro, era um dos maiores argumentos dos meus companheiros céticos. Freqüentemente afirmava que, se eu aceitasse a Bíblia, ao menos faria tudo para se­guir o que ela ensina e no caso de achar que tal coisa não era prática, lançaria tudo fora. Foi essa a minha resolução quando o Senhor me salvou. Acho que desde então real­mente provei a Palavra de Deus. Certamente nunca me ar­rependi de confiar nas suas promessas ou de seguir a sua direção.

"Quero relatar então como Deus respondeu às orações da minha mãe e da minha querida irmã, por minha con­versão:

"Certo dia, para mim inesquecível,... para me divertir, escolhi um tratado na biblioteca de meu pai. Pensei em ler o começo da história e não ler a exortação do fim.

"Eu não sabia o que acontecia ao mesmo tempo no co­ração da minha querida mãe, que estava a mais de cem quilômetros de casa. Ela levantara-se da mesa anelando a salvação de seu filho. Estando longe da família e livre da lida doméstica, entrou no seu quarto, resolvida a não sair antes de receber a resposta às suas orações. Orou hora após hora, até que, por fim, só podia louvar a Deus: o Espírito Santo revelou-lhe que o filho por quem orava já se havia convertido.

"Eu, como já mencionei, fui dirigido ao mesmo tempo a ler o tratado. Fui atraído pelas palavras: A obra consuma­da. Perguntei-me a mim mesmo: "Por. que o escritor não escreveu: A obra propiciatória? Qual é a obra consuma­da?" Então vi que a propiciação de Cristo era plena e per­feita. Toda a dívida de nossos pecados ficou paga e não res­tava coisa alguma que eu fizesse. Então raiou em mim a gloriosa convicção; fui iluminado pelo Espírito Santo, para reconhecer que eu somente precisava de prostrar-me e, aceitando o Salvador e a sua salvação, louvá-lo para todo o sempre.

"Assim, enquanto a minha querida mãe, no seu quarto, de joelhos, estava louvando a Deus, eu também louvava a Deus na biblioteca de meu pai, onde entrara para ler o li­vrinho."

Foi assim que Hudson Taylor aceitou, para a sua pró­pria vida, a obra propiciatória de Cristo, um ato que trans­formou todo o resto da sua vida. Acerca da sua consagra­ção, ele escreveu:

"Lembro-me bem da ocasião, quando, com gozo no co­ração, derramei a alma perante Deus, repentinamente, confessando-me grato e cheio de amor porque Ele tinha feito tudo - salvando-me quando eu não tinha mais espe­rança, nem queria a salvação. Supliquei-lhe que me conce­desse uma obra para fazer, como expressão do meu amor e gratidão, algo que envolvesse abnegação, fosse o que fosse; algo para agradar a quem fizera tanto para mim. Lembro-me de como, sem reserva, consagrei tudo, colocando a mi­nha própria pessoa, a minha vida, os amigos, tudo sobre o altar. Com a certeza de que a oferta fora aceita, a presença de Deus se tornou verdadeiramente real e preciosa. Pros­trei-me em terra perante Ele, humilhado e cheio de indizí­vel gozo. Para que serviço fora aceito eu não sabia. Mas fui possuído de uma certeza tão profunda de não pertencer mais a mim mesmo, que esse entendimento, depois domi­nou toda a minha vida".

O moço que entrou no quarto para estar sozinho com Deus nesse dia, não era o mesmo quando dali saiu. Um alvo e um poder se apossaram dele. Não mais ficou satis­feito em somente alimentar a sua própria alma nos cultos; começou a sentir a sua responsabilidade para com o próxi­mo - anelava tratar dos negócios de seu Pai. Regozijava-se com riquezas e bênçãos indizíveis. E, como os leprosos no arraial dos siros, Hudson e sua irmã, Amélia, diziam: Não fazemos bem; este dia é de boas novas, e nos calamos. De­sistiram, pois, de assistir aos cultos aos domingos à noite e saíram para anunciar a mensagem, de casa em casa, entre as classes mais pobres da cidade. Mas Hudson Taylor não se sentia satisfeito; sabia que ainda não estava no centro da vontade de Deus. Na angústia de seu espírito, como aquele da antiguidade, clamou: Não te deixarei ir, se me não abençoares. Então, sozinho e de joelhos, surgiu na sua alma um grande propósito: se Deus rompesse o poder do pecado e o salvasse em espírito, alma e corpo para toda a eternidade, ele renunciaria tudo na terra para ficar sempre ao seu dispor. Acerca desta experiência, foi ele mesmo que se expressou:

"Nunca me esquecerei do que senti então; não há pala­vras para descrever. Senti-me na presença de Deus, en­trando numa aliança com o Todo-poderoso. Pareceu-me que ouvi enunciadas as palavras: Tua oração é ouvida; to­das condições são aceitas.' Desde então nunca duvidei da convicção de que Deus me chamava a trabalhar na China."

A chamada de Deus, apesar de Hudson Taylor quase nunca a mencionar, ardia como um fogo dentro do seu co­ração. Copiamos a seguir o seguinte trecho de uma das car­tas enviada a sua irmã:

"Imagina, centenas de milhões de almas sem Deus, sem esperança, na China! Parece incrível; milhões de pes­soas morrem dentro de um ano sem qualquer conforto do Evangelho!... Quase ninguém liga importância à China, onde habita cerca da quarta parte da raça humana... Ora por mim, querida Amélia, pedindo ao Senhor que me dê mais da mente de Cristo... Eu oro no armazém, na estreba­ria, em qualquer canto onde posso estar sozinho com Deus. E ele me concede tempos gloriosos... Não é justo esperar que V... (a noiva de Hudson) vá comigo para morrer no es­trangeiro. Sinto profundamente deixá-la, mas meu Pai sabe qual é a melhor coisa e não me negará coisa alguma que seja boa..."

A falta de espaço não permite relatarmos aqui o heroís­mo da fé que o jovem mostrou suportando os sacrifícios e as privações necessárias para cursar a escola de medicina e de cirurgia para melhor servir o povo da China.

Antes de embarcar, escreveu estas palavras à sua mãe: "Anelo estar aí uma vez mais e sei que a senhora quer ver­me, mas acho melhor não nos abraçarmos um ao outro mais, pois isso seria encontrarmo-nos para logo nos sepa­rarmos para todo o sempre..." Contudo a sua mãe foi ao porto de onde o navio se ia fazer à vela. Alguns anos depois ele assim registrou a partida:"A minha querida mãe, que agora está com Cristo, veio a Liverpool para despedir-se de mim. Nunca me esquece­rei de como ela entrou comigo no camarote em que eu ia morar quase seis longos meses. Com o carinho de mãe, en­direitou os cobertores da pequena cama. Assentou-se ao meu lado e cantamos o último hino antes de nos separar­mos um do outro. Ajoelhamo-nos e ela orou. Foi a última oração de minha mãe antes de eu partir para a China. Ou­viu-se então o sinal para que todos os que não eram passa­geiros saíssem do navio. Despedimo-nos um do outro, sem a esperança de nos encontrarmos outra vez... Ao passar o navio pelas comportas, e quando a separação começou a ser realidade, do seu coração saiu um grito de angústia tão comovente, que jamais esquecerei. Foi como que meu cora­ção fosse traspassado por uma faca. Nunca reconheci tão plenamente até então, o que significam as palavras: Pois assim amou Deus ao mundo. Estou certo de que a minha preciosa mãe, nessa ocasião, chegou a compreender mais do amor de Deus para com um mundo que perece do que em qualquer outro tempo da sua vida. Oh! como se entris­tece o coração de Deus ao ver como seus filhos fecham os ouvidos à chamada divina para salvar o mundo pelo qual seu amado, seu único Filho sofreu e morreu!"

Os passageiros de navios modernos conhecem muito pouco do incômodo de viajar em navio à vela. Depois de uma das muitas tempestades por que passou o "Dum­fries", o nosso herói escreveu: "A maior parte do que pos­suo está molhado. O camarote do comissário, coitado, inundou-se..." Somente pelas orações e grandes esforços de todos a bordo é que conseguiram salvar as próprias vi­das quando o navio, levado por grande temporal, estava prestes a naufragar nas pedras da praia de Gales. A viagem que esperavam realizar em quarenta dias levou cinco me­ses e meio! Somente em 1 de março de 1854, Hudson Taylor, com a idade de vinte e um anos, conseguiu desembar­car em Shanghai, quando então ele escreveu estas impres­sões:

"Não posso descrever o que senti ao pisar em terra. Pa­recia-me que o coração ia estourar; as lágrimas de gratidão e gozo corriam-me pelas faces."Sobreveio-lhe, então, uma grande onda de saudade; não havia amigos, nem conhecidos, nem qualquer pessoa em todo o país para saudá-lo bem-vindo nem mesmo al­guém que conhecesse o seu nome.

Nesse tempo a China era terra incógnita, a não ser os cinco portos no litoral, abertos à residência de estrangei­ros. Foi na casa de um missionário em Shanghai, um dos cinco portos, que o moço achou hospedagem.

A vitória em todas as variadas provações nesse tempo era devida à característica mais saliente de Hudson Tay­lor, talvez a de nunca ficar parado na sua obra, fosse qual fosse o contratempo.

Durante os primeiros três meses na China, distribuiu 1.800 Novos Testamentos e Evangelhos e mais de 2 mil li­vros. Durante o ano de 1855, fez oito viagens - uma de tre­zentos quilômetros, subindo o rio Yangtzé. Em outra via­gem visitou cinqüenta e uma cidades onde nunca antes se ouvira a mensagem do Evangelho. Nessas viagens foi sem­pre prevenido do perigo que corria a sua vida entre um povo que nunca tinha visto estrangeiros.

Para ganhar mais almas para Cristo, apesar da censura dos demais missionários, adotou o hábito de vestir-se como os chineses. Rapou a cabeça na frente, deixando o resto dos cabelos a formar trança comprida. A calça, que tinha mais de meio metro de folga, ele a segurava conforme o costume, com um cinto. As meias eram de chita branca, o calçado de cetim. O manto pendendo dos ombros, sobressaía-lhe a ponta dos dedos das mãos mais que setenta centímetros.

Mas uma das cruzes mais pesadas que o nosso herói teve de levar foi a falta de dinheiro, quando a missão que o enviara se achava sem recursos.

Em 20 de janeiro de 1858, Hudson Taylor casou-se com Maria Dyer, uma missionária de talento na China. Desse enlace nasceram cinco filhos. A casa em que moraram pri­meiro, na cidade de Ningpo, tornou-se depois o berço da famosa Missão do Interior da China.

As privações e os encargos de serviço em Shanghai, Ningpo e outros lugares eram tais que Hudson Taylor, an­tes de completar seis anos na China, foi obrigado a voltar à Inglaterra para recuperar a saúde. Foi para ele quase como que uma sentença de morte quando os médicos informa­ram-lhe de que nunca mais devia voltar à China.

Entretanto, o fato de perecerem mais de um milhão de almas todos os meses na China era uma realidade para Hudson Taylor; com seu espírito indômito, ao chegar à In­glaterra, iniciou imediatamente a tarefa de preparar um hinário e a revisão do Novo Testamento para os novos con­vertidos que deixara na China. Usando ainda o traje de chinês, trabalhava tendo o mapa da China na parede e a Bíblia sempre aberta sobre a mesa. Depois de alimentar-se e fartar-se da Palavra de Deus, fitava o mapa, lembrando-se dos que não tinham tais riquezas. Todos os problemas ele os levava a Deus; não havia coisa alguma demasiado grande, nem tão insignificante, que a não deixasse com o Senhor em oração.

Em razão de suas atividades, estava tão sobrecarrega­do de correspondência e nos trabalhos dos cultos em prol da China, que após a sua chegada passaram-se mais de vinte dias antes de conseguir abraçar seus queridos pais em Bransley.

Passava, às vezes, a manhã, outras vezes a tarde, em jejum e oração. O seguinte trecho que ele escreveu mostra como a sua alma continuou a arder nos seus discursos nas igrejas da Inglaterra, sobre a obra missionária.

"Havia a bordo, entre os companheiros de viagem, cer­to chinês que se chamava Pedro. Passara alguns anos na Inglaterra, mas, apesar de conhecer algo do Evangelho, não reconhecia coisa alguma do seu poder para salvar. Senti-me ligado a ele e esforcei-me em orar e falar para levá-lo a Cristo. Mas quando o navio se aproximava de Sung-Kiang e eu me preparava para ir a terra, pregar e distribuir trata­dos, ouvi o grito de um homem que caíra na água. Fui ao convés com os outros - Pedro tinha desaparecido.

"Imediatamente arriamos as velas, mas a correnteza da maré era tal que não tínhamos a certeza do lugar onde o homem caíra. Vi alguns pescadores próximos, que usavam uma rede varredoura. Angustiado clamei:

- Venham passar a rede aqui, pois um homem está morrendo afogado!- Veh bin, foi a resposta inesperada, isto é, "Não é con­veniente".

- Não falem se é ou não é conveniente. Venham depres­sa antes que o homem pereça.

- Estamos pescando.

- Eu sei! Mas venham imediatamente e pagarei bem.

- Quanto nos quer dar?

- Cinco dólares, mas não fiquem conversando. Salvem o homem sem demora!

- Cinco dólares não basta - responderam eles. Não o fa­remos por menos de trinta dólares.

- Mas não tenho tanto! - darei tudo que eu tenho.

- Quanto tem o senhor?

- Não sei - porém não é mais do que catorze dólares. "Então os pescadores vieram, passaram a rede no lugar indicado. Logo à primeira vez apanharam o corpo do ho­mem. Mas todos os meus esforços para restaurar-lhe a res­piração foram inúteis. Uma vida fora sacrificada pela indi­ferença dos que podiam salvá-la quase sem esforço."

Ao ouvirem contar esta história, uma onda de indigna­ção passou por todo o grande auditório. Haveria em todo o mundo um povo tão endurecido e interesseiro como esse! Mas ao continuar o seu discurso, a convicção feriu ainda mais o coração dos ouvintes.

- "O corpo então tem mais valor que a alma? Censura­mos esses pescadores, dizendo que foram culpados da mor­te de Pedro, porque era coisa fácil salvá-lo. - Mas que acontece com os milhões que estamos deixando perecer para toda a eternidade? Que diremos acerca da ordem implícita: Ide por todo o mundo, pregai o evangelho a toda a criatura? Deus nos diz também: 'Livra os que estão des­tinados à morte, e os que são levados para a matança, se os puderes retirar. Se disseres: eis que não o sabemos; por­ventura aquele que pondera os corações não o considerará? e aquele que atenta a tua alma não o saberá? não pagará ele ao homem conforme a sua obra?'

- "Credes que cada pessoa entre esses milhões da Chi­na, tem uma alma imortal e que não há outro nome debai­xo do céu, dado entre os homens a não ser o precioso nome de Jesus, pelo qual devamos ser salvos? - Credes que Ele,Ele só, é o Caminho, a Verdade e a Vida e que ninguém vai ao Pai senão por Ele? Se assim o credes, examinai-vos a vós mesmos para ver se estais fazendo todo o possível para levar seu nome a todos.

"Ninguém deve dizer que não é chamado para ir à Chi­na. Ao enfrentar tais fatos, todas as pessoas precisam sa­ber se têm uma chamada para ficarem em casa. Amigo, se não tens certeza de uma chamada para continuar onde es­tás, como podes desobedecer à clara ordem do Salvador, para ir? - Se estás certo, contudo, de estares no lugar onde Cristo quer, não por causa do conforto ou dos cuidados da vida, então estás tu orando como convém a favor dos mi­lhões de perdidos da China? Estás tu usando teus recursos para a salvação deles?"

Certo dia, não muito depois de haver regressado à In­glaterra, Hudson Taylor, ao completar a estatística, veio a saber que o número de missionários evangélicos na China diminuira em vez de aumentar. Apesar de a metade da po­pulação pagã estar na China, o número de missionários durante o ano tinha diminuído de cento e quinze para so­mente noventa e um. Começaram a soar aos ouvidos do missionário estas palavras: "Quando eu disser ao ímpio: Certamente morrerás; não avisando tu, não falando para avisar o ímpio acerca do seu caminho ímpio, para salvar a sua vida. aquele ímpio morrerá na sua maldade, mas o seu sangue da tua mão o requererei".

Era um domingo, 25 de junho de 1865, de manhã, à bei­ra-mar. Hudson Taylor, cansado e doente, estava com al­guns amigos em Brighton. Mas não podendo suportar mais o regozijo da multidão na casa de Deus, retirou-se para an­dar sozinho nas areias da maré vazante. Tudo em redor era paz e bonança, mas na alma do missionário rugia uma tempestade. Por fim, com alívio indizível, clamou: "Tu, Senhor, tu podes assumir todo o encargo. Com tua chama­da, e como teu servo, avançarei, deixando tudo nas tuas mãos."

Assim "a Missão do Interior da China foi concebida na sua alma e todas as etapas do seu progresso realizaram-se por seus esforços. Na calma do seu coração, na comunhão profunda e indizível com Deus, originou-se a missão."Com o lápis na mão, abriu a Bíblia e, enquanto as on­das do vasto mar batiam aos seus pés, escreveu as simples mas memoráveis palavras: "Orei em Brighton pedindo vinte e quatro trabalhadores competentes e dispostos, em 25 de junho de 1865".

Mais tarde, recordando-se da vitória dessa ocasião es­creveu:

"Grande foi o alívio de espírito que senti ao regressar da praia. Depois de findar o conflito, tudo era gozo e paz. Parecia que me faltava muito pouco para voar até a casa do senhor Pearse. Na noite desse dia dormi profundamen­te. A querida esposa achou que a visita a Brighton serviu para renovar-me maravilhosamente. Era verdade!"

O vitorioso missionário, juntamente com a família e os vinte e quatro chamados por Deus, embarcaram em Lon­dres, no "Lammermuir", para a China em 26 de setembro de 1865. O anelante alvo de todos era o de erguer a bandei­ra de Cristo nas onze províncias ainda não ocupadas da China. Alguns dos amigos os animaram, mas outros disse­ram: "Todo o mundo ficará esquecido dos irmãos. Sem uma junta aqui na Inglaterra ninguém se importará com a obra por muito tempo. Promessas são fáceis de fazer hoje em dia; dentro de pouco tempo não terão o pão cotidiano".

A viagem levou mais que quatro meses. Acerca de uma das tempestades, um dos missionários escreveu:

"Durante todo o temporal, o senhor Taylor se compor­tou com a maior calma. Por fim os marinheiros recusaram-se a trabalhar. O comandante aconselhou todos a bordo a amarrarem os cintos de salvação, dizendo que o navio não resistiria à força das ondas mais que duas horas. Nessa al­tura, o comandante avançou na direção dos marinheiros com o revólver na mão. O senhor Taylor então aproximou-se dele e pediu-lhe que não obrigasse dessa forma os mari­nheiros a trabalhar. O missionário dirigiu-se também aos homens e explicou-lhes que Deus ia salvá-los, mas que eram necessários os maiores esforços de todas as pessoas a bordo. Acrescentou que tanto ele como todos os passagei­ros estavam prontos a ajudá-los, e que, como era evidente, as vidas deles também corriam perigo. Os homens conven­cidos por esses argumentos começaram a tirar os destroços,ajudados por todos nós; em pouco tempo conseguimos amarrar os grandes mastros, que batiam com tanta força que estavam demolindo um lado do navio".

Foram horas de grande regozijo quando o "Lammer­muir", por fim, aportou, com todos sãos a bordo, em Shanghai. Outro navio que chegou logo após, perdera de­zesseis das vinte e duas pessoas a bordo!

Os missionários iniciaram o ano de 1867 com um dia de jejum e oração, pedindo, como Jabez, que Deus os aben­çoasse e estendesse os seus termos. O Senhor os ouviu dan­do-lhes entrada, durante o ano, em outras tantas cidades! Encerraram o ano com outro dia de jejum e oração. Um culto durou das onze da manhã às três da tarde, sem nin­guém se sentir enfadado. Outro culto se realizou às 8,30 da noite quando sentiram ainda mais a unção do Espírito Santo. Continuaram juntos em oração até a meia-noite, quando celebraram a Ceia do Senhor.

No início de 1867, o Senhor chamou Graça Taylor, filha de Hudson Taylor, para o Lar Eterno, quando ela comple­tava oito anos de idade. No ano seguinte, a senhora Taylor e o filho, Noel, faleceram de cólera. Foi assim que se ex­pressou o pai e marido:

"Ao amanhecer o dia, apareceu à luz do sol o que fora ocultado pela luz de vela - a cor característica da morte no rosto da minha esposa. O meu amor não podia ignorar por mais, não somente o seu estado grave, mas que realmente ela estava morrendo. Ao conseguir acalmar o meu espírito, eu lhe disse:

- Sabes, querida, que estás morrendo?

- Morrendo! Achas que sim? Por que pensas tal coisa?

- Posso ver, que sim, querida. As tuas forças estão se acabando.

- Será mesmo? Não sinto qualquer dor, apenas cansa­ço.

- Sim, estás saindo para a Casa Paterna. Brevemente estarás com Jesus.

"Minha preciosa esposa, lembrando-se de mim e de como eu devia ficar sozinho, em um tempo de tão grandes lutas, privado da companheira com a qual tinha o costume de levar tudo ao trono da graça, disse:- Sinto muito!

Então ela parou, como que querendo corrigir o que dis­sera, porém eu lhe perguntei:

- Estás triste por causa da partida para estar com Je­sus?

"Nunca me esquecerei de como ela olhou para mim e respondeu:

- Oh! não. Bem sabes, querido, que durante mais de dez anos, não houve sombra alguma entre mim e meu Sal­vador. Não estou triste por causa da partida para estar com Ele, mas me entristeço porque terás de ficar sozinho nessas lutas. Contudo... Ele estará contigo e suprirá tudo o que é mister."

"Nunca presenciei uma cena tão comovente" - escre­veu o senhor Duncan. - "Com a última respiração da que­rida senhora Taylor, o senhor Taylor caiu de joelhos, o co­ração transbordando, e a entregou ao Senhor, agradecen­do-lhe a dádiva e os doze anos e meio que passaram juntos. Agradeceu-lhe, também, pela bênção de Ele mesmo a le­var para a sua presença. Então, solenemente dedicou-se a si mesmo novamente ao serviço do Mestre.

Não é de supor que Satanás deixasse a Missão do Inte­rior da China invadir seu território com vinte e quatro ou­tros obreiros, sem incitar o povo a maior perseguição. Fo­ram distribuídos em muitos lugares, impressos atribuindo aos estrangeiros os mais horripilantes e bárbaros crimes, especialmente aos que propagavam a religião de Jesus. Al­voroçaram-se cidades inteiras e muitos dos missionários ti­veram de abandonar tudo e fugir para escapar com vida.

Quase seis anos depois de o grupo do "Lammermuir" haver desembarcado na China, Hudson Taylor estava no­vamente na Inglaterra. Durante esse tempo da obra na China, a missão aumentava de duas estações com sete obreiros, para treze estações com mais de trinta missioná­rios e cinqüenta obreiros, estando separadas as estações, uma da outra, na média de cento e vinte quilômetros.

Foi durante essa visita à Inglaterra que Hudson Taylor se casou com Miss Faulding, também fiel e provada mis­sionária na China.

Acerca de Hudson Taylor, nesse tempo, certa pessoa amiga, escreveu:

"O senhor Taylor anunciou um hino, sentou-se ao har­mônio e tocou. Não fui atraído por sua personalidade. Era de físico franzino e falou com voz mansa. Como os demais jovens, eu julgava que uma grande voz sempre acompa­nhava um verdadeiro prestígio. Mas quando ele disse: 'O­remos e nos dirigiu em oração, mudei de parecer; eu nunca ouvira alguém orar como ele. Havia na sua oração uma ousadia, um poder que fez todas as pessoas presentes se humilharem e sentirem-se na presença de Deus. Falava face a face com Deus como um homem com um amigo. Sem dúvida, tal oração era o fruto de longa permanência com o Senhor; era como o orvalho descendo dos céus. Te­nho ouvido muitos homens orarem, mas não ouvi ninguém como o senhor Taylor e o senhor Spurgeon. Ninguém, de­pois de ouvir como esses homens oravam, pode esquecer-se de tais orações. Foi a maior experiência da minha vida ou­vir o senhor Spurgeon, quando tomou, como se fosse a mão do auditório de seis mil pessoas e as levou ao Santo dos Santos. E ouvir o senhor Taylor rogar pela China era reco­nhecer algo do que significa a súplica fervorosa do justo. "

Foi em 1874 quando, com a esposa, subiam o grande rio Yangtze e ele meditava sobre as nove províncias que se es­tendiam dos trópicos de Burma ao planalto de Mongólia e as montanhas de Tibete, que Hudson Taylor escreveu:

"A minha alma anseia, e o coração arde pela evangeli­zação de centenas de milhões de habitantes dessas provín­cias sem obreiros. Oh! se eu tivesse cem vidas a dar ou gas­tar por eles!"

Mas, no meio da viagem, receberam notícias da morte da fiel missionária Amélia Blatchley, na Inglaterra. Ela não somente cuidava dos filhos do senhor Taylor, mas também servia como secretária da Missão.

Grande foi a tristeza de Hudson Taylor ao chegar à In­glaterra e achar não somente os seus queridos filhos sepa­rados e espalhados, mas a obra da Missão quase paralisa­da. Mas isso não foi ainda a sua maior tristeza. Na sua via­gem pelo rio Yangtze, o senhor Taylor, ao descer a escada do navio, levou uma grande queda, caiu sobre os calcanhares e de tal maneira que o choque ofendeu a espinha dorsal. Depois que chegou à Inglaterra o incômodo da queda agra­vou-se até ele ficar acamado. Sobreveio-lhe então a maior crise da sua vida, justamente quando havia maior necessi­dade de seus esforços. Completamente paralítico das per­nas, tinha de passar todo o tempo deitado de costas!

Uma pequena cama era a sua prisão; é melhor dizer que era a sua oportunidade. Ao pé da cama, na parede, es­tava afixado um mapa da China. E ao redor dele, de dia e de noite, estava a presença divina.

Aí, de costas, mês após mês, permaneceu o nosso herói, rogando e suplicando ao Senhor a favor da China. Foi-lhe concedida a fé para pedir que Deus enviasse dezoito mis­sionários. Em resposta aos seus apelos para oração, escri­tos com a maior dificuldade e publicados no jornal, sessen­ta moços responderam de uma vez. Dentre eles, vinte e quatro foram escolhidos. Ali, ao lado do leito, ele iniciou aulas para os futuros missionários e ensinou-lhes as pri­meiras lições da língua chinesa - e o Senhor os enviou para a China.

Lê-se o seguinte acerca de como o missionário inutiliza­do em corpo, nesse tempo, ficou bom:

"Ele foi tão maravilhosamente curado, em resposta à oração, que podia cumprir com um incrível número de suas obrigações. Passou quase todo o tempo das férias, com seus filhos em Guernsey, escrevendo. Durante os quinze dias que passou ali, apesar de desejar compartilhar da delícia da linda praia, com seus filhos, saiu com eles ape­nas uma vez. Mas as cartas que enviou para a China e ou­tros lugares valiam mais do que ouro."

Certo missionário assim escreveu acerca de uma visita que lhe fez na China:

"Nunca me esquecerei do gozo e da amável maneira com que me saudou. Conduziu-me logo para o 'escritório' da Missão do Interior da China. Devo dizer que foi para mim uma surpresa, ou choque, ou ambas as coisas. Os 'móveis' eram caixotes. Uma mesa estava coberta de inú­meros papéis e cartas. Ao lado do lume havia uma cama, bem arrumada, tendo um pedaço de tapete a servir de cobertor. Nessa cama o senhor Taylor descansava de dia e de noite.

"O senhor Taylor, sem qualquer palavra de desculpa, deitou-se na cama e travamos a palestra mais preciosa da minha vida. Toda a idéia que eu tinha das qualificações para ser um 'grande homem' foi completamente mudada; não havia nele coisa alguma do espírito de superioridade. Vi nele o ideal de Cristo, da verdadeira grandeza, tão evi­dente que permanece ainda no meu coração, através dos anos, até o presente momento. Hudson Taylor reconhecia profundamente que, para evangelizar os milhões da China, era imperioso que os crentes na Inglaterra mostrassem muito mais de abnegação e sacrifício. - Mas como podia ele insistir em sacrifício sem primeiramente praticá-lo na sua própria vida? Assim ele, deliberadamente, cortou da sua vida toda a aparência de conforto e luxo.

"Nas viagens pelo interior da China, ele, invariavel­mente, se levantava para passar uma hora com Deus antes de clarear o dia, às vezes, para depois dormir novamente. Quando eu despertava para alimentar os animais, sempre o achava lendo a Bíblia à luz de vela. Fosse qual fosse o ambiente ou o barulho nas hospedarias imundas, não des­cuidava o hábito de ler a Bíblia. Geralmente em tais via­gens, orava de bruços, porque lhe faltavam as forças para permanecer tanto tempo de joelhos.

- Qual será o assunto do seu discurso, hoje? - pergun­tou-lhe certo crente que viajava com ele, de trem.

- Não tenho certeza; ainda não tive tempo de resolver, respondeu-lhe Hudson Taylor.

- Não teve tempo! - exclamou o homem. - Ora, que faz o senhor a não ser descansar depois de assentar-se aí?

- Não conheço o que seja descansar. - foi a resposta cal­ma que ele deu.

"Depois de embarcarmos em Edinburgo, passei todo o tempo orando e levando todos os nomes dos membros da Missão do Interior da China, e os problemas de cada um, ao Senhor."

Está além da nossa compreensão como no meio de uma das maiores obras de evangelização de toda a história, ele podia dizer:"Nunca fomos obrigados a abandonar uma porta aber­ta, por falta de recursos. Apesar de muitas vezes gastarmos até o último pêni, a nenhum dos obreiros nacionais nem a nenhum dos missionários, faltou o prometido 'pão' coti­diano. Os tempos de provações são sempre tempos aben­çoados e o que é necessário nunca chega demasiado tarde."

Outro segredo do seu grande êxito de levar a mensagem de salvação ao interior da China era a determinação de que a obra não somente continuasse com caráter internacional, mas também, interdenominacional - que aceitasse missio­nários dedicados a Deus, de qualquer nação e de qualquer denominação.

Em 1878, ao regressar de uma viagem, começou a orar pedindo que Deus enviasse mais trinta missionários antes de findar o ano de 1879. Diremos, ao lembrarmo-nos do di­nheiro necessário para pagar as passagens e sustentar tan­tas pessoas, que a sua fé era grande. Pois bem, vinte e oito pessoas, com os corações acesos pelo desejo de salvação dos perdidos na China, confiando em Deus para o seu sustento cotidiano, embarcaram antes de findar o ano de 1878 e mais seis em 1879.

Conversando com um companheiro de lutas, na cidade de Wuchang, Hudson Taylor começou a enumerar os pon­tos estratégicos em que deviam começar logo a evangelizar os dois milhões de habitantes do vale do grande rio Yangt-ze e o do seu tributário, o rio Hã. Com menos de cinqüenta ou sessenta novos obreiros, a Missão não podia dar tal pas­so - e a própria Missão não tinha mais de um total de cem! Contudo, a Hudson Taylor foi dada a fé de pedir outros se­tenta - lembrado das palavras: "Designou o Senhor ainda outros setenta".

"Reunimo-nos hoje para passar o dia em jejum e ora­ção" - escreveu Hudson Taylor em 30 de junho de 1872. - "O Senhor nos abençoou grandemente... Alguns passaram a maior parte da noite em oração... O Espírito Santo nos encheu até nos parecer ser impossível receber mais sem
morrer."

Em certo culto, durante quase duas horas, louvaram ininterruptamente a Deus pelos setenta obreiros já recebidos - pela fé. E, em realidade, foram recebidos mais do que setenta, e dentro do prazo marcado.

O Senhor conduziu a Missão, pouco a pouco para uma visão ainda mais larga - levou os obreiros a pedirem ao Se­nhor outros cem, em 1887. Assim, disse o senhor Stephen­son: "Se me mostrassem uma foto de todos os cem, batida aqui na China, não seria mais real do que realmente é."

Contudo, Hudson Taylor não iniciou precipitadamente o programa de orar e se esforçar para receber mais cem missionários. Como sempre, devia ter certeza da direção de Deus antes de resolver orar e se esforçar para alcançar o alvo.

Seis vezes mais do que o número que pediram, se ofere­ceram para ir! Mas, a Missão rejeitou fielmente a todos que não concordaram com os princípios declarados desde o início. Assim, exatamente o número pedido embarcou para a China. - Não foram cento e um, nem noventa e no­ve, mas exatamente cem.

Depois da visita de Hudson Taylor ao Canadá, aos E.U.A. e à Suécia em 1888 e 1889, a Missão do Interior da China gozou de um dos maiores impulsos para avançar em todos os anais da história de missões. Assim escreveu de­pois, o nosso missionário, acerca do que lhe pesava grande­mente no coração durante toda a sua visita à Suécia:

"Confesso-me envergonhado de que, até essa ocasião, nunca tinha meditado sobre o que o Mestre realmente que­ria dizer ao mandar pregar o Evangelho 'a toda a criatura'. Esforcei-me durante muitos anos, como muitos outros ser­vos de Deus, para levar o Evangelho aos lugares mais dis­tantes; planejei alcançar todas as províncias e muitos dos distritos menores da China, sem compreender o sentido evidente das palavras do Salvador.

"'a toda a criatura'? O número total de comunicantes entre os crentes da China não excedia quarenta mil. Se houvesse outro tanto de aderentes, ou mesmo três vezes mais, e se cada um levasse a mensagem a oito de seus patrícios - mesmo assim, não alcançariam mais de um mi­lhão. 'a toda a criatura'! as palavras abrasavam-lhe o ínti­mo da alma. Mas como a Igreja, e eu mesmo, falhávamos em aceitá-las justamente como Cristo queria! Isso eu percebi então; para mim havia apenas uma saída, a de obede­cer.

"Qual será a nossa atitude para com o Senhor Jesus Cristo quanto a essa ordem? Suprimiremos o título Pe­nhor', que lhe foi dado, para reconhecê-lo apenas como nosso Salvador? Aceitaremos o fato de Ele tirar a penalida­de do pecado, e recusaremos a confessarmo-nos comprados por bom preço, e que Ele tem o direito de esperar a nossa obediência implícita? Diremos que somos os nossos pró­prios senhores, prontos a conceder-lhe apenas o que lhe é devido, a Ele que comprou-nos com seu próprio sangue, com a condição de Ele não pedir demasiado? As nossas vi­das, os nossos queridos, as nossas possessões são somente nossas, não são dele? Daremos o que acharmos convenien­te e obedeceremos à sua vontade somente se Ele não nos pedir demasiado sacrifício? Estamos prontos a deixar Je­sus Cristo nos levar aos céus, mas não queremos que esse homem 'reine sobre nós'?

"O coração de todos os filhos de Deus rejeitará, certa­mente uma afirmação assim formulada. Mas não é verda­de que inumeráveis crentes, em todas as gerações, se com­portaram tal como se isso fosse a base própria para suas vi­das? São poucas as pessoas entre o povo de Deus que reco­nhecem a verdade de que, ou Cristo é o Senhor de tudo, ou então não é Senhor de coisa alguma! Se somos nós que jul­gamos a Palavra de Deus, e não a Palavra que nos julga; se concedemos a Deus somente o quanto quisermos então so­mos nós os senhores e Ele o nosso devedor e, conseqüente­mente, Ele deve ser grato pela esmola que lhe concedemos; deve sentir-se obrigado por nossa concordância aos seus desejos. Se, ao contrário, Ele é Senhor então tratemo-lo como Senhor: 'E por que me chamais, Senhor, Senhor, e não fazeis o que eu digo?'"

Foi assim que Hudson Taylor, sem esperar, alcançou a mais larga visão da sua vida, a visão que dominou a última década de seu serviço. Com os cabelos já grisalhos, após cinqüenta e sete anos de experiência, enfrentou o novo sen­tido de responsabilidade com a mesma fé e confiança que o caracterizavam quando era mais novo. Sua alma ardia ao meditar nos alvos antigos! Ficou ainda mais firme ao exe­cutar a visão de outrora!

Foi assim que sentiu a direção de unificar todos os gru­pos evangélicos, que trabalhavam na evangelização da China, para orarem e se esforçarem para aumentar o nú­mero de missionários, enviando-se à China outros mil, dentro de cinco anos. O número exato enviado à China du­rante esse prazo, foi de mil cento e cinqüenta e três!

Não é, pois, de admitir que as forças físicas de Hudson Taylor começassem a faltar, não tanto pelas privações e cansaço das viagens contínuas, nem pelos esforços incan­sáveis em escrever e pregar, nem pelo peso das grandes e inumeráveis responsabilidades de dirigir a Missão do Inte­rior da China. Os que o conheciam intimamente sabiam que era um homem gasto de tanto amar.

A gloriosa colheita de almas na China aumentava cada vez mais. Mas a situação política do país piorava dia após dia até culminar na Carnificina dos Boxers, no ano de 1900, quando centenas de crentes foram mortos. Somente da China Inland Mission pereceram cinqüenta e oito mis­sionários, e vinte e um de seus filhos.

Hudson Taylor, com a sua esposa, estavam novamente na Inglaterra, quando começaram a chegar telegrama após telegrama avisando-os dos horripilantes acontecimentos na China; aquele coração que tanto amava a cada missio­nário, quase cessou de pulsar. Acerca desse acontecimento assim se manifestou: "Não sei ler, não sei pensar, nem mesmo sei orar, mas sei confiar."

Certo dia, alguns meses depois, Hudson Taylor, com o coração transbordante e as lágrimas correndo-lhe pelas fa­ces, estava contando o que lera em uma carta que acabara de receber de duas missionárias, escrita um dia antes de elas morrerem nas mãos dos boxers. Eis o que ele disse:

"Oh! o gozo de sair de tal motim de pessoas enfurecidas para estar na sua presença, para ver o seu sorriso!" Quan­do pôde continuar, acrescentou: "Elas agora não estão ar­rependidas. Têm a imperecível coroa! Andam com Cristo em vestes brancas, porque são dignas".

Falando acerca de seu grande desejo de ir a Shanghai, para estar ao lado dos refugiados, ele disse: "Não sei se poderia ajudá-los, mas sei que me amam. Se pudessem che­gar-se a mim nas tristezas para chorarmos juntos, ao me­nos poderiam ter um pouco de conforto." Mas ao lembrar-se de que tal viagem lhe era impossível por causa da saúde, a sua tristeza parecia maior do que podia suportar.

Apesar de sentir profundamente a sua incapacidade para trabalhar como de costume, achou grande conforto em estar com a sua esposa, a qual tanto amava. Findara o tempo em que deviam passar longos meses e anos separa­dos um do outro, nas lutas em tantos lugares.

Foi em 30 de julho de 1904 que sua esposa faleceu. "Não sinto nada de dor, nada de dor", dizia ela, apesar da ânsia em respirar. Então, de madrugada, percebendo a an­gústia de espírito do seu marido, pediu-lhe que orasse ro­gando ao Senhor que a levasse logo. Foi a oração mais difí­cil da vida de Hudson Taylor, mas por amor dela, ele orou pedindo a Deus que libertasse o espírito da sua esposa. Logo que orou, dentro de cinco minutos cessou a ânsia e não muito depois ela adormeceu em Cristo.

A desolação de espírito de Hudson Taylor sentiu depois da partida da sua fiel companheira era indescritível. Toda­via, achou indizível paz nesta promessa: "A minha graça te basta." Começou a recuperar as forças físicas e na pri­mavera fez a sua sétima viagem aos E.U.A. Daí fez a últi­ma viagem à China, desembarcando em Shanghai em 17 de abril de 1905.

O valente líder da Missão, depois de tão prolongada au­sência, foi recebido em todos os lugares com grandes mani­festações de amor e estima da parte dos missionários e crentes, especialmente dos que escaparam dos intraduzí­veis espetáculos da insurreição dos Boxers.

Em Chin-Kiang, o veterano missionário visitou o cemi­tério onde estão gravados os nomes de quatro filhos e o da esposa. As recordações eram motivo de grande gozo, isto é, o dia da grande reunião se aproximava.

No meio da viagem, quando visitava as igrejas na Chi­na, sem ninguém esperar, nem ele mesmo, findou a sua carreira na terra. Isso aconteceu na cidade de Chang-sha em 3 de junho de 1905. Sua nora contou o seguinte, sobre esse acontecimento:"O querido papai estava deitado. Como sempre gosta­va de fazer, tirou as cartas, dos queridos, da sua carteira e as estendeu sobre a cama. Baixou-se para ler uma das car­tas perto do candeeiro aceso colocado na cadeira ao lado do leito. Para que ele não se sentisse demasiadamente inco­modado, puxei outro travesseiro e o coloquei por baixo da sua cabeça e assentei-me numa cadeira ao seu lado. Men­cionei as fotografias da revista, Missionary Review, que es­tava aberta sobre a cama. Howard tinha saído para ir bus­car algo para comer, quando papai, de repente, virou a ca­beça e abriu a boca como se quisesse espirrar. Abriu a boca a segunda, e a terceira vez. Não clamou; não pronunciou qualquer palavra. Não mostrou qualquer dificuldade para respirar - nada de ânsia. Não olhou para mim, e não pare­cia cônscio... Não era a morte, era a entrada na vida imor­tal. Seu semblante era de descanso e sossego. Os vincos do rosto feitos pelo peso da luta de longos anos pareciam ha­ver desaparecido em poucos momentos. Parecia dormir como criança no colo da mãe; o próprio quarto parecia cheio de indizível paz."

Na cidade de Chin-Kiang, à beira do grande rio que tem a largura de mais de dois quilômetros, foi enterrado o corpo de Hudson Taylor.

Muitas foram as cartas de condolências recebidas de fiéis filhos de Deus no mundo inteiro. Emocionante foram os cultos celebrados em vários países, em sua memória. Impressionantes foram os artigos e livros impressos acerca das suas vitórias na obra de Deus. Mas as vozes mais des­tacadas, as que Hudson Taylor apreciaria mais, se pudesse ouvi-las, eram as das muitas crianças chineses, que, can­tando louvores a Deus, deitaram flores sobre o seu túmulo.

(extraido do livro hérois da fé)


sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

João Paton Missionário aos antropófagos (1824-1907)


João Paton
 Missionário aos antropófagos

(1824-1907)
Perto de Dalswinton, na Escócia, morava um casal co­nhecido em toda a região como os velhos Adão e Eva. A esse lar veio em visita uma sobrinha, Janete Rogerson. É de supor-se que não houvesse muita coisa na casa isolada dos velhos para distrair a jovem, sempre viva e alegre. Mas uma coisa atraiu-lhe o interesse: um rapaz chamado Tiago Paton, que entrava, dia após dia, no matagal perto da ca­sa. Levava sempre um livro na mão, como se fosse ali para estudar e meditar. Certo dia, a moça, vencida pela curiosi­dade, entrou furtivamente por entre as árvores e espiou o rapaz recitando os Sonetos Evangélicos de Erskine. A sua curiosidade tornou-se em santa admiração quando o jo­vem, deixando o chapéu no chão, ajoelhou-se debaixo duma árvore para derramar a alma em oração perante Deus. Ela, espírito de brincalhona, avançou e pendurou o chapéu em um galho que estava próximo. Em seguida es­condeu-se onde podia, sem ser vista, para presenciar o ra­paz perplexo, a procurar o chapéu. No dia seguinte a cena se repetiu. Mas o coração da moça comoveu-se ao ver a perturbação do rapaz, imóvel por alguns minutos com o chapéu na mão. Foi assim que ele, ao voltar no dia seguin­te ao lugar onde se ajoelhava diariamente, achou um car­tão preso na árvore. No cartão leu: "A pessoa que escondeu seu chapéu confessa-se sinceramente arrependida de tê-lo feito e pede que ore, rogando a Deus que a torne crente tão sincera como o senhor".

O jovem fitou por algum tempo o cartão esquecendo-se completamente naquele dia dos sonetos. Por fim, tirou o cartão da árvore. Estava reprovando a si mesmo e à sua es­tupidez por não saber que fora um ser humano quem es­condera o chapéu duas vezes, quando, por entre as árvores, uma moça, balde na mão e cantando um hino escocês, pas­sou na frente da casa do velho Adão.

Naquele momento, o moço, por instinto divino e tão in­falivelmente, como por qualquer voz que jamais falara a um profeta de Deus, sabia que a visita angélica que invadi­ra seu retiro de oração fora a gentil e hábil sobrinha dos ve­lhos Adão e Eva. Tiago Paton ainda não conhecia Janete Rogerson, mas ouvira falar nas suas extraordinárias quali­ficações intelectuais e espirituais.

E provável que Tiago Paton começasse a orar por ela -em um sentido diferente daquele que ela pedira. De qual­quer forma, a moça furtara não somente o chapéu do ra­paz, mas também, o seu leal coração - um furto que resul­tou, por fim, no casamento dos dois.

Tiago Paton, fabricante de meias no condado de Dunfries, e sua esposa Janete, andavam, como Zacarias e Isa­bel na Antiguidade, irrepreensíveis perante o Senhor. Ao nascer-lhes o primogênito, deram-lhe o nome de João, dedicando-o solenemente a Deus, com oração, para ser mis­sionário ao povos que não tinham oportunidade de conhe­cer a Cristo.

Entre a casa própria, em que morava a família dos Patons, e a parte que servia de fábrica, havia um pequeno aposento. Acerca desse quarto, João Paton escreveu:

"Era o santuário de nossa humilde casa. Várias vezes ao dia, geralmente depois das refeições, o nosso pai entra­va nesse quarto e, 'fechada a porta', orava. Nós, seus filhos, compreendíamos, como se fosse por instinto espiri­tual, que se derramavam orações por nós, como fazia na antiguidade o sumo sacerdote, quando entrava no Santo dos Santos, em favor do povo. De vez em quando se ouvia o eco duma voz em tons de quem suplica pela vida; passáva­mos pela porta nas pontinhas dos pés, de modo a não per­turbar a santa e íntima conversação. O mundo lá fora não sabia de onde vinha o gozo que brilhava no rosto de nosso pai, mas nós, seus filhos, o sabíamos: era o reflexo da pre­sença divina, que era sempre uma realidade para ele na vida cotidiana. Nunca espero, quer num templo, quer nas serras, quer nos vales, sentir Deus mais perto, mais visível, andando e conversando mais intimamente com os homens do que naquela humilde casa coberta de palha. Se, por uma catástrofe indizível, tudo quanto pertence à religião fosse apagado da memória, minha alma reverteria de novo ao tempo da minha mocidade: ela fechar-se-ia naquele santuário e, ao ouvir novamente os ecos daquelas súplicas a Deus, lançaria para longe toda a dúvida com este grito vitorioso: 'Meu pai andava com Deus; porque não posso eu também andar?'".

Na autobiografia de João Paton, vê-se que as suas lutas diárias eram grandes. Mas o que lemos abaixo revela qual a força que operava para que ele sempre avançasse na obra de Deus.

"Antes, realizava-se culto doméstico na casa de meus avós somente aos domingos, mas meu pai convenceu pri­meiro a minha avó a orar, ler um trecho da Bíblia e cantar um hino diariamente, pela manhã e à noite; depois todos os membros da família seguiram esse costume. Foi assim que meu pai começou, aos dezessete anos de idade, o ben­dito costume de fazer cultos matutinos e vespertinos em casa; costume que observou, talvez sem uma única exce­ção, até se achar no leito de morte, com setenta e sete anos de idade, quando, no último dia da sua vida, uma passa­gem das Escrituras foi lida, e ouviu-se sua voz na oração. Nenhum dos filhos se recorda de um só dia que não fosse assim santificado; muitas vezes havia pressa em atender a um negócio; inúmeras vezes chegavam os amigos, mas nada impedia que nos ajoelhássemos em redor do altar familiar, enquanto o 'sumo sacerdote' dirigia as nossas ora­ções a Deus e se oferecia a si mesmo e a seus filhos ao mes­mo Senhor. A luz de tal exemplo era uma bênção, tanto para o próximo, como para a nossa família. Muitos anos depois, contaram-me que a mais depravada mulher da vi­la, uma mulher da rua, mas depois salva e transformada pela graça divina, declarou que a única coisa que evitou o seu suicídio foi que, numa noite escura, perto da janela da casa de meu pai, ouviu-o implorando no culto doméstico, que Deus convertesse 'o ímpio do erro do seu caminho e o fizesse luzir como uma jóia na coroa do Redentor'.' Vi', dis­se ela, 'como eu era um grande peso sobre o coração desse bom homem e sabia que Deus responderia à sua súplica. Foi por causa dessa certeza que não entrei no Inferno e que achei o único Salvador'".

Não é de admirar que, em tal ambiente, três dos onze filhos de Tiago Paton: João, Valter e Tiago, fossem cons­trangidos a dar suas vidas à obra mais gloriosa, a de ga­nhar almas. Não julgamos estar esse ponto completo sem lhe acrescentar mais um trecho dessa autobiografia:

"Até que ponto fui impressionado nesse tempo pelas orações de meu pai, não posso dizer, nem ninguém pode compreender. Quando de joelhos, e todos nós ajoelhados em redor dele no culto doméstico, ele derramava toda a sua alma em oração, com lágrimas, não só por todas as ne­cessidades pessoais e domésticas, mas também pela con­versão da parte do mundo onde não havia pregadores para servirem a Jesus, sentíamo-nos na presença do Salvador vivo e chegamos a conhecê-lo e a amá-lo como nosso Amigo divino. Ao levantarmo-nos da oração, eu costumava olhar para a luz do rosto do meu pai e cobiçava o mesmo espíri­to; anelava, em resposta às suas orações, pela oportunida­de de me preparar e sair, levando o bendito Evangelho a uma parte do mundo então sem missionários".

Acerca da disciplina do lar, eis o que ele escreveu: "Se houvesse algo realmente sério para corrigir, meu pai se re­tirava primeiramente para o quarto de oração e nós com­preendíamos que ele levava o caso a Deus; essa era a parte mais severa do castigo para mim! Eu estava pronto a enca­rar qualquer penalidade, mas o que ele fazia penetrava na minha consciência como uma mensagem de Deus. Amáva­mos ainda mais o nosso pai ao ver quanto tinha de sofrer para nos castigar, e, de fato, tinha muito pouco a castigar-nos, pois - dirigia a todos nós, onze filhos, muito mais pelo amor do que pelo temor".

Por fim chegou o dia em que João tinha de deixar o lar paterno. Sem o dinheiro para a passagem e com tudo que possuía, inclusive uma Bíblia embrulhada num lenço, saiu a pé para trabalhar e estudar em Glasgow. O pai o acom­panhou até uma distância de nove quilômetros. O último quilômetro, antes de se separarem um do outro, os dois ca­minhavam sem poderem falar uma só palavra - o filho sa­bia pelo movimento dos lábios do pai que este orava em seu coração por ele. Ao chegarem ao lugar combinado para se separarem, o pai balbuciou: "Deus te abençoe, meu fi­lho! O Deus de teu pai te prospere e te guarde de todo o mal". Depois de se abraçarem, o filho saiu correndo en­quanto o pai, em pé, no meio da estrada, imóvel, o chapéu na mão e com lágrimas correndo pelas faces, continuava a orar em seu coração.

Alguns anos depois, o filho testificou de que essa cena, gravada na sua alma, o estimulava como um fogo inextin­guível a não desapontar o pai no que esperava dele, seu fi­lho, que seguisse o seu bendito exemplo de andar com Deus.

Durante os três anos de estudos em Glasgow, apesar de trabalhar com as próprias mãos para se sustentar, João Paton, no gozo do Espírito Santo, fez uma grande obra na seara do Senhor. Contudo, soava-lhe constantemente aos ouvidos o clamor dos selvagens nas ilhas do Pacífico e isso foi, antes de tudo, o assunto que ocupava as suas medita­ções e orações diárias. Havia outros para continuar a obra que fazia em Glasgow, mas quem desejava levar o Evange­lho a esses pobres bárbaros?!

Ao declarar sua resolução de trabalhar entre os antro­pófagos das Novas Hébridas, quase todos os membros da sua igreja se opuseram à sua saída. Um muito estimado ir­mão assim se exprimiu: "Entre os antropófagos! será co­mido por eles!" A isso João Paton respondeu: 'O irmão é muito mais velho que eu, breve será sepultado e comido por vermes; declaro ao irmão que, se eu conseguir viver e morrer servindo o Senhor Jesus e honrando o seu nome, não me importarei ser comido por antropófagos ou por ver­mes; no grande dia da ressurreição, o meu corpo se levan­tará tão belo como o seu, na semelhança do Redentor res­suscitado".

De fato, as Novas Hébridas haviam sido batizadas com sangue de mártires. Os dois missionários, Williams e Har­ris, enviados para evangelizar essas ilhas, poucos anos an­tes desse tempo, foram mortos a cacetadas, e seus cadáve­res cozidos e comidos. "Os pobres selvagens não sabiam que assassinavam seus amigos mais fiéis; assim os crentes em todos os lugares, ao receberem as notícias do martírio dos dois, oraram com lágrimas por esses povos."

E Deus ouviu as súplicas, chamando, entre outros, a João Paton. Porém, a oposição à sua saída era tal, que ele resolveu escrever a seus pais; pela resposta veio a saber que eles o haviam dedicado para tal serviço, no dia do seu nas­cimento. Desde esse momento, João Paton não mais duvi­dou da vontade de Deus, e assentou no seu coração gastar a vida servindo aos indígenas das ilhas do Pacífico.

O nosso herói conta muitas coisas de interesse acerca da longa viagem à vela para as Novas Hébridas. Quase no fim da viagem, quebrou-se o mastro do navio. As águas os levavam lentamente para Tana, uma ilha de antropófagos, onde a bagagem teria sido saqueada e todos a bordo cozi­dos para serem comidos. Contudo, Deus ouvira suas súpli­cas e alcançaram uma outra ilha. Alguns meses depois, fo­ram à mesma ilha de Tana, onde conseguiram comprar o terreno dos silvícolas e edificar uma casa. Comove o cora­ção ler que construíram a casa sobre os mesmos alicerces lançados pelo missionário Turner, quinze anos antes, o qual teve de fugir da ilha para escapar de ser morto e comi­do pelos selvagens.

Acerca da sua primeira impressão sobre o povo, Paton escreveu: "Fui levado ao maior desespero. Ao vê-los na sua nudez e miséria, senti tanto horror como compaixão. Eu ti­nha deixado a obra entre os amados irmãos em Glasgow, obra em que sentia muito gozo, para dedicar-me a criatu­ras tão degeneradas. Perguntei-me a mim mesmo: - 'É possível ensiná-las a distinguir entre o bem e o mal, e levá-las a Cristo, ou mesmo a civilizá-las? Mas tudo isso eram apenas sentimentos passageiros. Logo senti um desejo tão profundo de levá-los ao conhecimento e amor de Jesus, como jamais sentira quando trabalhava em Glasgow .

Antes de completar a casa em que o casal Paton iria morar, houve uma batalha entre duas tribos. As mulheres e crianças fugiram para a praia onde conversavam e riam ruidosamente, como se seus pais e irmãos estivessem ocu­pados em algum trabalho pacífico. Mas enquanto os selva­gens gritavam e se empenhavam em conflitos sangrentos, os missionários entregavam-se à oração por eles. Os cadá­veres dos mortos foram levados pelos vencedores a uma fonte de água fervente, onde foram cozidos e comidos. A noite ainda se ouvia pranto e gritos prolongados nas vilas em redor. Os missionários foram informados de que um guerreiro, ferido na batalha, acabara de morrer em casa. A sua viúva foi estrangulada imediatamente, conforme o cos­tume, para que o seu espírito acompanhasse o do marido e lhe continuasse a servir de escrava.

Os missionários, então, nesse ambiente da mais repug­nante superstição, da mais baixa crueldade e da mais fla­grante imoralidade, esforçavam-se para aprender a usar todas as palavras possíveis desse povo que não conhecia a escrita. Anelavam falar de Jesus e do amor de Deus a esses seres que adoravam árvores, pedras, fontes, riachos inse­tos, espíritos dos homens falecidos, relíquias de cabelos e unhas, astros, vulcões, etc.

A esposa de Paton era uma ajudadora esforçada e den­tro de poucas semanas reuniu oito mulheres da ilha e as instruía diariamente. Três meses depois da chegada dos missionários à ilha, a esposa de Paton faleceu de maleita e um mês depois o filhinho também morreu. - Quem pode avaliar as saudades de Paton, durante os anos que traba­lhou sem ajudadora em Tana?! Apesar de quase haver morrido também de maleita, de os crentes insistirem para que voltasse à sua terra, e de os indígenas fazerem plano após plano de matá-lo para o comerem, esse herói perma­neceu orando e trabalhando fielmente no posto onde Deus o colocara.Um templo foi construído e um bom número se congre­gava para ouvir a mensagem divina. Paton não somente conseguiu reduzir a língua dos tanianos à forma escrita, mas também traduziu uma parte das Escrituras, a qual imprimiu, apesar de não conhecer a arte tipográfica. Acer­ca dessa gloriosa façanha de imprimir o livro em Taniano, assim escreveu: "Confesso que gritei de alegria quando a primeira folha saiu do prelo, tendo todas as páginas na or­dem própria; era uma hora da madrugada. Eu era o único homem branco na ilha e havia horas em que todos os nati­vos dormiam. Contudo, atirei ao ar o chapéu e dancei como um menino, por algum tempo, ao redor do prelo".

- "Terei eu perdido a razão? Não devia, como missio­nário, estar de joelhos louvando a Deus, por mais esta pro­va de sua graça? Crede, amigos, o meu culto foi tão sincero como o de Davi, quando dançou diante da Arca do seu Deus! Não deveis pensar que, depois de pronta a primeira página, eu não me tivesse ajoelhado pedindo ao Todo-Poderoso que propagasse a luz e a alegria do seu Santo Li­vro nos corações entenebrecidos dos habitantes daquela terra inculta".

Depois de Paton haver passado três anos em Tana, o casal de missionários que vivia na ilha vizinha, Erromanga, foi martirizado barbaramente a machadadas, em pleno dia. Ao completar quatro anos de estada em Tana, o ódio dos indígenas dessa ilha chegou ao auge. Diversas tribos combinaram matar o "indefeso" missionário e findar, as­sim, com a religião do Deus de amor, em toda a ilha. Con­tudo, como ele mesmo se declarava imortal até findar sua obra na terra, evitava, em pleno campo, os inúmeros gol­pes de lanças, machadinhas e cacetes, armados pelas mãos dos indígenas, e assim conseguiu escapar para a ilha de Aneitium. Planejou então ocupar-se na obra de tradução do resto dos Evangelhos na língua taniana, enquanto espe­rava a oportunidade de voltar a Tana. Contudo, sentiu-se dirigido a aceitar a chamada para ir à Austrália. Em pou­cos meses, animou as igrejas ali a comprarem um navio à vela, para servir aos missionários. Despertou-as, também, a contribuírem liberalmente e a enviarem mais missioná­rios a evangelizar todas as ilhas.

Acerca da sua viagem à Escócia, depois de alguns anos nas Novas Hébridas, ele escreveu: "Fui, de trem, a Dunfries e lá achei condução para o querido lar paterno, onde fui acolhido com muitas lágrimas. Havia somente cinco curtíssimos anos que saíra desse santuário com a minha jo­vem esposa, e agora, ai de mim! - mãe e filhinho jaziam no túmulo, em Tana, nos braços um do outro, até o dia da res­surreição... Não foi com menos gozo, apesar de sentir-me angustiado, que, poucos dias depois, me encontrei com os pais da minha querida falecida esposa."

Antes de deixar a Escócia, para nova viagem, Paton ca­sou-se com a irmã de outro missionário. Chamada por Deus a trabalhar entre os povos mergulhados nas trevas das Novas Hébridas, ela serviu como fiel companheira de seu marido, por muitos anos.

"Meu último ato na Escócia foi ajoelhar-me no lar pa­terno, durante o culto doméstico, enquanto meu veneran­do pai, como sacerdote, de cabelos brancos, nos encomen­dava, uma vez mais, 'aos cuidados e proteção de Deus, Se­nhor das famílias de Israel.' Eu tinha por certo, quando nos levantamos da oração e nos despedimos uns dos ou­tros, que não nos encontraríamos com eles antes do dia da ressurreição. Porém ele e minha querida mãe, com cora­ções alegres, nos ofertaram de novo ao Senhor, para o seu serviço entre os silvícolas. Mais tarde, meu querido irmão me escreveu que a 'espada' que traspassara a alma da mi­nha mãe, era demasiado aguda e que, depois da nossa saí­da, ela jazeu por muito tempo como morta, nos braços de meu pai."

De volta às ilhas, Paton foi constrangido pelo voto de todos os missionários a não voltar a Tana, mas abrir a obra na vizinha ilha de Aniwa. Dessa forma, tinha de aprender outra língua e começar tudo de novo. Na obra de preparar o terreno para a construção da casa, Paton ajuntou dois cestos de ossos humanos de vítimas comidas pelo povo da ilha!

"Quando essas pobres criaturas começavam a usar um pedacinho de chita, ou um saiote, era sinal exterior de uma transformação, apesar de estarem longe da civilização. E quando começavam a olhar para cima, e a orar Àquele a quem chamavam de 'Pai, nosso Pai', meu coração se derre­tia em lágrimas de gozo; e sei por certo que havia um cora­ção divino nos céus que se regozijava também."

Contudo, como em Tana, Paton considerava-se imortal até completar a obra que lhe fora designada por Deus. Inú­meras vezes evitou a morte agarrando a arma levantada contra ele pelos selvagens para o matarem.

Por fim, a força das trevas unidas contra o Evangelho em Aniwa cedeu. Isso data do tempo em que cavou um poço na ilha. Para os indígenas, a água de coco, para satis­fazer a sede, era suficiente, porque se banhavam no mar e usavam pouco a água para cozinhar - e nenhuma para la­var a roupa! Mas para os missionários, a falta de água doce era o maior sacrifício e Paton resolveu cavar um poço.

No início, os indígenas auxiliaram-no na obra, apesar de considerarem o plano, "do Deus de Missi dar chuva de baixo", concepção de uma mente avariada. Mas depois, amedrontados pela profundeza da cavidade, deixaram o missionário a cavar sozinho, dia após dia, enquanto o con­templavam de longe, dizendo uns aos outros: - "Quem ja­mais ouviu falar em chuva que vem debaixo?! Pobre Mis­si! Coitado!" Quando o missionário insistia em dizer que o abastecimento de água em muitos países vinha de poços, eles respondiam: - "É assim que se dá com os doidos; nin­guém pode desviá-los de suas idéias loucas."

Depois de longos dias de labor enfadonho, Paton alcan­çou terra úmida. Confiava em Deus obter água doce, em resposta às suas orações; contudo, nessa altura, ao meditar sobre o efeito que causaria entre o povo, sentia-se quase to­mado do horror ao pensar que podia encontrar água salga­da. "Sentia-me", escreveu ele, "tão comovido que fiquei molhado de suor e tremia-me todo o corpo, quando a água começou a borbulhar debaixo e a encher o poço. Tomei um pouco de água na mão, levei-a à boca para prová-la. Era água! Era água potável! era água viva do poço de Jeová!"

Os chefes indígenas com seus homens a tudo assistiam. Era uma repetição, em ponto pequeno, dos israelitas ro­deando Moisés, quando ele fez água sair da rocha. O mis­sionário, depois de passar algum tempo louvando a Deus, ficou mais calmo, desceu novamente, encheu um jarro da"chuva que Deus Jeová lhe dava pelo poço", e entregou-o ao chefe. Este sacudiu o jarro para ver se realmente havia água dentro; então tomou um pouco na mão e, não satisfei­to com isso, levou à boca um pouco mais. Depois de revol­ver os olhos de alegria, bebeu-a e rompeu em gritos: "Chu­va! Chuva! É chuva mesmo! - Mas como a arranjou?" Paton respondeu: - "Foi Jeová, meu Deus, quem a deu da sua terra em resposta ao nosso labor e orações. Olhai e vede por vós mesmos como borbulha a terra!"

Não havia um homem entre eles que tivesse coragem de chegar-se perto da boca do poço; então formaram uma fila comprida e, segurando-se uns aos outros pelas mãos, avançaram até que o homem da frente pudesse olhar para dentro do poço; a seguir o que tinha olhado passava para a retaguarda, deixando o segundo olhar para a "chuva de Jeová, mui embaixo".

Depois de todos olharem, um por um, o chefe dirigiu-se a Paton e disse: "Missi, a obra de seu Deus Jeová é admi­rável, é maravilhosa! Nenhum dos deuses de Aniwa jamais nos abençoou tão maravilhosamente. - Mas, Missi, Ele continuará para sempre a dar chuva por essa forma?, ou acontecerá como a chuva das nuvens?" O missionário ex­plicou, para gozo indizível de todos, que essa bênção era permanente e para todos os aniwanianos.

Os nativos experimentaram, durante os anos que se se­guiram, em seis ou sete dos lugares mais prováveis, perto de várias vilas, cavar poços. Todas as vezes que o fizeram ou encontraram pederneira ou o poço dava água salgada. Diziam entre si: - "Sabemos cavar, mas não sabemos orar como Missi e, portanto, Jeová não nos dá chuva debaixo!"

Num domingo, depois que Paton alcançou água do po­ço, o chefe Namakei convocou o povo da ilha. Fazendo seus gestos com a machadinha na mão, dirigiu-se aos ouvintes da seguinte maneira: - "Amigos de Nakamei, todos os po­deres do mundo não podiam obrigar-nos a crer que fosse possível receber chuva das entranhas da terra, se não a ti­véssemos visto com os próprios olhos e provado com a bo­ca... Desde já, meu povo, devo adorar o Deus que nos abriu o poço e nos dá chuva debaixo. Os deuses de Aniwa não po­dem socorrer-nos como o Deus de Missi. Para todo o sempre sou um seguidor de Deus Jeová. Todos vós que quiserdes fazer o mesmo, tomai os ídolos de Aniwa, os deuses que nossos pais temiam e lançai-os aos pés de Missi... Vamos a Missi para ele nos ensinar como devemos servir a Jeová... que enviou seu Filho Jesus para morrer por nós e nos levar aos céus."

Durante os dias que se seguiram, grupo após grupo, al­guns dos silvícolas com lágrimas e soluços, outros aos gri­tos de louvor a Jeová, levaram seus ídolos de pau e pedra, os quais lançaram em montes perante o missionário. Os ídolos de pau foram queimados, os de pedra enterrados em covas de quatro a cinco metros de profundidade e alguns, de maior superstição, foram lançados no fundo do mar, longe da terra.

Um dos primeiros passos da vida cotidiana da ilha, de­pois de destruírem os ídolos, foi a invocação da bênção do Senhor às refeições. O segundo passo, uma surpresa maior e que também encheu o missionário de gozo, foi um acordo entre eles de fazer culto doméstico de manhã e à noite. Sem dúvida esses cultos eram misturados, por algum tem­po, com muitas das superstições do paganismo

Mas Paton traduziu as Escrituras, e as imprimiu na língua aniwaniana e ensinou o povo a lê-las. A transforma­ção do povo da ilha foi uma das maravilhas dos tempos modernos. Como arde o coração ao ler acerca da ternura que o missionário sentia para com esses amados filhos na fé, e do carinho com que esses, outrora cruéis selvagens que comiam uns aos outros, mostravam para com o missioná­rio!

Que o nosso coração arda também para ver a mesma transformação dos milhares de silvícolas no interior de nosso querido Brasil!

Paton descreveu a primeira Ceia do Senhor com as se­guintes palavras: "Ao colocar o pão e o vinho nas mãos, ou­trora manchadas do sangue de antropofagia, agora esten­didas para receber e participar dos emblemas do amor do Redentor, antecipei o gozo da glória até o ponto de o cora­ção não suportar mais. É-me impossível experimentar delícia maior antes de eu poder fitar o rosto glorificado do próprio Senhor Jesus Cristo!"Deus, não somente concedeu ao nosso herói o indizível gozo de ver os aniwanianos irem evangelizar as ilhas vizi­nhas, mas também de ver seu próprio filho, Frank Paton, e esposa, morando na ilha de Tana e continuando a obra que ele começara com o maior sacrifício.

Foi com a idade de 83 anos, que João G. Paton ouviu a voz de seu precioso Jesus, chamando-o para o lar eterno. Quão grande o seu gozo, não somente ao reunir-se aos seus queridos filhos das ilhas do Sul do Pacífico, que entraram no Céu antes dele, mas, também, saudar bem-vindos os outros ao chegarem ali, um por um!

(extraido do livro hérois da fé)

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Davi Livingstone (1813-1873) Célebre missionário e explorador



Davi Livingstone (1813-1873)

Célebre missionário e explorador

(1813-1873)
Certo comerciante, ao visitar a abadia de Westminster, em Londres, onde se acham sepultados os reis e vultos eminentes da Inglaterra, inquiriu qual o túmulo, excluindo o do "soldado desconhecido", que é mais visitado. O por­teiro respondeu que era o de Davi Livingstone. São poucos os humildes e fiéis servos de Deus que o mundo distingue e honra assim.

Conta-se que, em Glasgow, depois de passar dezesseis anos na África, Livingstone foi convidado a fazer um dis­curso perante o corpo discente da universidade. Os alunos resolveram vaiar esse "camarada missionário'', fazendo o maior barulho possível. Certa testemunha do aconteci­mento disse: "Contudo, desde o momento em que Livings­tone compareceu perante eles, magro e delgado, depois de cair trinta e uma vezes de febre nas matas da África, e com um braço descansando numa tipóia, depois do encontro com um leão, os alunos guardaram grande silêncio. Ouvi­ram, com o maior respeito, tudo que o orador relatou e amaneira como Jesus cumprira a sua promessa: "Eis que eu estou convosco todos os dias, até a consumação dos sécu­los".

Davi Livingstone nasceu na Escócia. Seu pai, Neil Li­vingstone, contava aos filhos as proezas de seus antepassa­dos, por oito gerações. Um dos bisavôs de Davi, com a família, fugira dos cruéis pactuários, para os pantanais e montes escabrosos, onde podia adorar a Deus em espírito e em verdade. Mas mesmo esses cultos, que se realizavam entre os espinhos e, às vezes, no gelo, eram interrompidos, de vez em quando, pela cavalaria que chegava galopando para matar ou levar presos, tanto homens como mulheres.

Os pais de Davi criaram seus filhos no temor do Se­nhor. O lar era sempre alegre e servia como notável modelo de todas as virtudes domésticas. Não se perdia uma hora durante os sete dias da semana e o domingo era esperado e honrado como o dia de descanso. Com a idade de nove anos, Davi ganhou um Novo Testamento, prêmio oferecido ao repetir de cor o capítulo mais comprido da Bíblia, o Sal­mo 119.

"Entre as recordações mais sagradas da minha infân­cia", escreveu Livingstone, "estão as da economia da mi­nha mãe para que os poucos recursos fossem suficientes para todos os membros da família. Quando completei dez anos de idade, meus pais me colocaram em uma tecelagem para que eu ajudasse a sustentar a família. Com parte do salário da primeira semana, comprei uma gramática de la­tim".

Davi iniciava o dia na tecelagem, às seis horas da ma­nhã e, com intervalos para o café e o almoço, trabalhava até oito da noite. Segurava a sua gramática aberta na má­quina de fiar algodão e, enquanto trabalhava, estudava-a linha por linha. Às oito horas da noite, dirigia-se, sem per­der tempo, à escola noturna. Depois das aulas, estudava as lições para o dia seguinte, às vezes, até a meia-noite, quan­do a mãe tinha de obrigá-lo a apagar a luz e dormir.

A inscrição no túmulo dos pais de Davi Livingstone in­dica as privações no lar paterno:

Para marcar o lugar onde descansa, Neil Livingstone, e Agnes Hunter, sua esposa e para exprimir a gratidão a Deus dos seus filhos: João, Davi, Janet, Carlos e Agnes, por pais pobres e piedosos.

Os amigos insistiam em que ele mudasse as últimas pa­lavras para "pais pobres, mas piedosos". Contudo, Davi recusou porque, para ele, tanto a pobreza, como a piedade eram motivos de gratidão. Sempre considerou o fato de aprender a trabalhar longos dias, mês após mês, ano atrás ano, na fábrica de algodão, uma das maiores felicidades da sua vida.

Nos dias feriados, Davi gostava de pescar e fazer longas excursões pelos campos e às margens dos rios. Esses pas­seios extensos lhe serviam tanto de instrução como de re­creio; saía para verificar na própria natureza o que estuda­ra nos livros sobre botânica e geologia. Sem o saber, ele as­sim se preparava em corpo e mente para as explorações científicas e para o que escreveria com exatidão acerca da natureza na África.

Aos vinte anos, houve grande mudança espiritual em Davi Livingstone, que determinou o rumo de todo o resto da sua vida. "A bênção divina inundou-lhe o ser como inundara o coração do apóstolo Paulo ou de Agostinho, e outros do mesmo tipo, dominando os desejos carnais... Atos de abnegação, muito difíceis de executar sob a lei fér­rea da consciência, tornaram-se em serviços de vontade li­vre sob o brilho do amor divino... É evidente que fora mo­vido por uma força calma, mas tremenda, dentro do pró­prio coração, até o fim da vida. O amor que começou a co­movê-lo, na casa paterna, continuou a inspirá-lo durante todas as longas e enfadonhas viagens pela África, e o levou a ajoelhar-se, à meia-noite, no rancho em Ilala, de onde seu espírito, enquanto ainda orava, voltou ao seu Deus e Salvador.

Davi, desde a infância, ouvia falar de um missionário valente na China, cujo nome era Gutzlaff. Nas suas ora­ções, à noite, ao lado de sua mãe, orava por ele. Com a idade de dezesseis anos, Davi começou a sentir desejo profun­do de fazer conhecido o amor e a graça de Cristo àqueles que jaziam em densas trevas, e resolveu firmemente no co­ração dar, também sua vida, como médico e missionário, ao mesmo país, a China.

Ao mesmo tempo, o professor da sua classe na Escola Dominical, Davi Hogg, o aconselhava: "Ora, moço, faça da religião o motivo principal da sua vida cotidiana e não uma coisa inconstante, se quer vencer as tentações e outras coisas que o querem derribar". E Davi assentou no seu co­ração dirigir sua vida por essa norma.

Ao completar nove anos de serviços na fábrica, foi pro­movido a um trabalho mais lucrativo. Conseguiu comple­tar seus estudos, recebendo o diploma de licenciado da Fa­culdade de Médicos e Cirurgiões de Glasgow, sem ter rece­bido um tostão de auxílio de alguém.

Se os crentes não o tivessem aconselhado a que falasse à Sociedade Missionária de Londres acerca de enviá-lo como missionário, ele depois declarou que teria ido por seus próprios esforços.

Durante todos os anos de estudos para ser médico e missionário, sentia-se dirigido para ir a China. Certa vez, numa reunião, ouviu o discurso de um homem, de barba comprida e branca, alto, robusto e de olhos bondosos e pe­netrantes, chamado Roberto Moffat. Esse missionário vol­tara da África, um país misterioso, cujo interior era então desconhecido. Os mapas desse continente tinham no cen­tro enormes espaços em branco, sem rios e sem serras. Fa­lando da África, Moffat disse a Davi Livingstone: "Há uma vasta planície ao norte, onde tenho visto, nas manhãs ensolaradas, a fumaça de milhares de aldeias, onde ne­nhum missionário ainda chegou".

Comovido, ao ouvir falar em tantas aldeias sem o Evangelho e sabendo que não podia mais ir à China por causa de guerra que havia naquele país, Livingstone res­pondeu: "Irei imediatamente para a África".

Com isso os irmãos da missão concordaram e Davi vol­tou ao humilde lar em Blantire para se despedir dos pais e irmãos. Às cinco horas da manhã, do dia 17 de novembro de 1840, a família se levantou. Davi leu os salmos 121 e 135com eles. As seguintes palavras ficaram gravadas no seu coração, para o fortalecerem no calor e perigos durante os longos anos que passou depois, na África: "O sol não te molestará de dia e nem a lua de noite... O Senhor guardará a tua entrada e a tua saída, desde agora e para sempre". Depois de orarem, despediu-se da sua mãe e irmãs e andou a pé, com seu pai que o acompanhou até Glasgow. Depois de se despedirem um do outro, Davi embarcou no navio para não mais ver, aqui na terra, o rosto nobre de Neil Li­vingstone.

A viagem de Glasgow ao Rio de Janeiro e, por fim, à ci­dade do Cabo, na África, durou três meses. Mas Davi não desperdiçou o tempo. O comandante se tornou seu amigo íntimo e ajudou-o a preparar os cultos, nos quais Davi pre­gava aos tripulantes do navio. O novo missionário aprovei­tou, também, a oportunidade a bordo para aprender a usar o sextante e saber exatamente a posição do navio, obser­vando a lua e as estrelas. Essa ciência lhe foi mais tarde de incalculável valor para orientar-se nas viagens de evangelização e exploração no imenso interior desconhecido do qual "subia a fumaça de mil vilas sem missionário".

Da cidade do Cabo, a viagem de 190 léguas foi feita aos solavancos, num carro de boi, através de campos incultos. A viagem durou dois meses, até chegar em Curumã, onde devia esperar o regresso de Roberto Moffatt. Desejava es­tabelecer-se em um lugar cinqüenta a sessenta léguas mais para o norte de qualquer outro em que houvesse obra mis­sionária.

Para aprender a língua e os costumes do povo, nosso pioneiro passava o tempo viajando e vivendo entre os indí­genas. O seu boi de sela passava a noite amarrado, en­quanto ele assentava-se com os africanos ao redor do fogo, ouvindo as lendas dos seus heróis. Livingstone, por sua vez, contava-lhes as preciosas e verdadeiras histórias de Belém, da Galiléia e da Cruz. Continuou sempre os seus estudos enquanto viajava, fazendo mapas dos rios e serras do território percorrido. Em uma carta a um amigo escre­veu que descobrira trinta e duas qualidades de raízes co­mestíveis e quarenta e três espécies de fruteiras que davam no deserto sem serem cultivadas. De um ponto que alcançou, faltavam-lhe apenas dez dias de viagem para chegar ao grande lago Ngami, que descobriu sete anos depois.

De Curumã, o missionário, licenciado da Faculdade de Médicos e Cirurgiões de Glasgow, escreveu a seu pai: "Te­nho uma clientela grande. Há pacientes aqui que andaram mais de sessenta léguas para receberem tratamento médi­co. Esses, ao regressarem, enviarão outros para o mesmo fim".

Estabeleceu a sua primeira missão no lindo vale de Mabotsa, na terra de Bacarla. Em uma carta, escrita de Curumã, Livingstone assim descreveu o local que escolhe­ra para centro de evangelização: "Está situado em um an­fiteatro de serras que se intitula 'Mabotsa', isto é, 'Ceia de Bodas'. Que Deus nos ilumine com a sua presença, para que, por intermédio de servos tão fracos, muito povo ache entrada para a Ceia das Bodas do Cordeiro!"

Foi em Mabotsa que teve o histórico encontro com um leão. Acerca disso escreveu Davi: "Ele saltou e me alcan­çou o ombro; ambos fomos ao chão. Rosnando horrivel­mente perto do meu ouvido, sacudiu-me como um cão faz a um gato. Os abalos que me deu o animal produziram-me um entorpecimento igual ao que deve sentir um rato, de­pois da primeira sacudidela que lhe dá o gato. Atacou-me uma espécie de adormecimento, em que não senti dor nem sensação de temor".

Contudo, antes de a fera ter tempo de o matar, deixou-o para atacar outro homem que, de lança na mão, entrara na luta. O ombro dilacerado de Livingstone nunca sarou completamente: ele nunca mais pôde apontar um rifle ou levar a mão à cabeça sem sentir dores.

Foi na casa de Roberto Moffatt, em Curumã, que che­gou a conhecer Maria, a filha mais velha desse missioná­rio. Depois de abrir a missão em Mabotsa os dois se casa­ram. Seis filhos foram o fruto desse enlace.

Depois de Livingstone se casar, a Escola Dominical em Mabotsa transformou-se em escola diária, tendo sua espo­sa como professora. Schele, o chefe da tribo, tornou-se grande estudante da Bíblia, mas queria "converter" todo o seu povo à força de "litupa", isto é, chicote de couro de ri­noceronte. Schele iniciou culto doméstico em casa e o próprio Livingstone se admirou da sua maneira, simples e na­ta, de orar. Era o costume de Livingstone começar o dia com culto doméstico e não é de admirar que o chefe o ado­tasse também.

Livingstone foi obrigado a mudar-se para Chonuane, dez léguas distante e, mais tarde, por falta de água, ele e todo o povo mudaram-se para Colobeng. Foi nesse último lugar que o chefe da tribo construiu uma casa para os cul­tos e Livingstone construiu com grande sacrifício de di­nheiro e labor, a sua terceira casa de residência. Nessa casa morou cinco anos para nunca mais conseguir fixar re­sidência em qualquer lugar na terra.

Acerca do trabalho nesse lugar, assim se expressou: "A-qui temos um campo muitíssimo difícil de cultivar... Se não confiássemos que o Espírito Santo opera em nós, desis­tiríamos em desespero".

Através do deserto de Calari, chegavam boatos de um grande lago e de um lugar chamado ''Fumaça Barulhen­ta", o que ele julgava ser uma grande cachoeira. As secas o oprimiam tanto em Colobeng que Livingstone resolveu fa­zer uma viagem de exploração e achar um lugar mais ideal para estabelecer a sua missão. Assim, em 1º de junho de 1849, com o chefe da tribo, seus "guerreiros", três brancos e sua família, saíram para atravessar o grande deserto de Calari. O guia do grupo, Romotobi, conhecia o segredo de subsistir no deserto, cavando com as mãos e chupando a água debaixo da areia por meio dum canudo.

Depois de viajarem muitos dias, chegaram ao rio Zouga. Ao inquirir os indígenas, estes o informaram de que o rio tinha nascente em uma terra de rios e florestas. Li­vingstone ficou convicto de que o interior da África não era um grande deserto como o mundo de então supunha, e o seu coração ardia com o desejo de achar uma via fluvial, para outros missionários irem para o interior do continen­te, com a mensagem de Cristo.

"A perspectiva", escreveu ele, "de achar um rio que dê entrada a uma vasta, populosa e desconhecida região, au­mentou constantemente desde então; aumentou tanto que, quando, por fim chegamos ao grande lago, esse impor­tante descobrimento, em si mesmo, parecia de pouca mon­ta".

Foi em 1º de agosto de 1849 que o grupo atingiu o lago Ngami, tão grande é esse lago que, de uma margem, não se avista a margem oposta. Sofreram longos dias de cruciante sede sem obter uma gota dágua, mas venceram todas as di­ficuldades e descobriram esse lago enquanto outros explo­radores mais bem equipados, mas menos persistentes, fa­lharam.

As notícias do descobrimento foram comunicadas à Royal Geographical Society, o que lhe votou uma bela re­compensa de vinte e cinco guinéus, "por ter descoberto uma importante terra, um importante rio e um grande lago".

O grupo teve de voltar a Colobeng. Depois de alguns meses, porém, iniciou novamente viagem para o lago Nga­mi. Não queria separar-se da sua família e levou-a em um carro de boi. Mas, ao alcançar o rio Zouga, os filhos foram atacados pela febre e ele teve de voltar com a família. Nas­ceu-lhe uma filha, que morreu logo de febre. Livingstone, contudo, ficou mais firme do que nunca, na sua resolução de achar um caminho para levar o Evangelho ao interior da África.

Depois de descansar alguns meses com a família, na casa de seu sogro, em Curumã, saíram com o propósito de achar um lugar saudável onde pudesse estabelecer uma missão mais para o interior. Foi nessa viagem, em junho de 1851, que descobriu o maior rio da África Oriental, o Zam­beze, rio do qual o mundo de então nunca ouvira falar.

No seguinte trecho que Livingstone escreveu, descobre-se algo do que tinham de sofrer nessas viagens: "Um dos assistentes desperdiçou a água que levávamos no carro e, à tarde, tínhamos apenas um restinho para as crianças. Pas­samos a noite angustiados e na manhã seguinte, quanto menos havia de água, tanto mais aumentava a sede das crianças. O pensamento de elas perecerem diante de nos­sos olhos, nos perturbava. Na tarde do quinto dia, senti­mos grande alívio, quando um dos homens voltou trazendo tanto desse líquido como jamais antes havíamos pensado."

Livingstone, convicto de que era a vontade de Deus que saísse para estabelecer outro centro de evangelização, ecom indômita fé de que o Senhor supriria todo o necessário para cumprir a sua vontade, avançava sem vacilar.

Depois de descobrir o rio Zambeze, Livingstone veio a saber que os lugares saudáveis eram sujeitos a serem sa­queados em qualquer tempo por outras tribos. Só nos luga­res infestados de doença e febre é que se achavam tribos específicas.

Resolveu, portanto, enviar a esposa para descansar na Inglaterra enquanto ele continuava as suas explorações a fim de estabelecer um centro para a obra de evangelização. Via-se forçado a estabelecer tal centro, porque os boêres holandeses invadiam o território, roubando as terras e o gado dos indígenas, pondo em prática um regime da mais vil escravatura. Livingstone enviou crentes fiéis para evangelizar os povos em redor, mas os boêres acabaram com essa obra, matando muitos dos indígenas e destruindo to­dos os bens que o missionário possuía em Colobeng.

Livingstone levou sua família para a cidade do Cabo, de onde seus queridos embarcaram em um navio para a In­glaterra.

Foi nesse tempo, quando Deus suprira todo o necessá­rio para a família voltar à Inglaterra, que disse: "Oh! Amor divino, eu não te amo com a força, a profundidade e o ardor que convém!"

A separação da família causou-lhe profunda mágoa, mas dirigiu o rosto heroicamente de novo para socorrer as infelizes tribos do interior da África.

Havia três motivos que o aconselhavam a fazer uma viagem de exploração: Primeiro, queria achar um lugar para residir com a família entre os "barotses" e evangeli­zá-los. Segundo, a comunicação entre o território dos "ba­rotses" e a cidade do Cabo era muito demorada e difícil e queria descobrir um caminho para um porto mais próxi­mo. Terceiro, queria fazer todo o possível para influenciar as autoridades contra o horrendo tráfico de escravos.

Foi nessa época da sua vida que Livingstone, por suas proezas, tornou-se conhecido no mundo inteiro.

No seu ardor, desejando que Deus lhe poupasse a vida e o usasse em abrir o continente para a entrada do Evange­lho, orou assim: "Ó Jesus, rogo que me enchas agora com oteu amor e me aceites e me uses um pouco para a tua gló­ria. Até agora não fiz nada para ti, mas quero fazer algo. Oh! eu te imploro que me aceites e me uses e que seja tua toda a glória". Escreveu mais ainda: "Não valeria coisa al­guma o que possuo ou o que possuirei, a não ser em relação ao reino de Cristo. Se alguma coisa que tenho pode servir para o seu reino, dar-lha-ei a Ele, a quem devo tudo neste mundo e durante a eternidade".

Livingstone atravessou, ida e volta, o continente africa­no, desde a foz do Zambeze a São Paulo de Luanda, faça­nha essa realizada pela primeira vez por um branco. Nas suas memórias que escrevia diariamente, nota-se como ad­mirava as lindas paisagens de um continente que o mundo julgava ser um vasto deserto.

Chegou a Luanda, magro e doente. Apesar da insistên­cia do cônsul britânico para que regressasse à Inglaterra, a fim de recuperar a saúde abalada, ele voltou novamente, por outro caminho, para levar seus fiéis companheiros até em casa, conforme lhes prometera antes de iniciarem a viagem.

Nessa viagem, Livingstone descobriu as magníficas ca­taratas de Vitória, nome que ele deu às grandes quedas em honra da rainha da Inglaterra. Nesse lugar, o rio Zambeze tem a largura de mais de um quilômetro; ali as águas desse grande rio se precipitam espetacularmente de uma altura de cem metros.

Levingstone continuou a pregar o Evangelho constan­temente, às vezes a auditórios de mais de mil indígenas. Antes de tudo, esforçava-se para ganhar a estima das tri­bos hostis, por onde passava, por sua conduta cristã, em grande contraste com a dos mercadores de escravos.

Sozinho, com os seus fiéis macololos, caiu trinta e uma vezes de febre nos matagais, durante um período de sete meses. Mas não era tanto o sofrimento físico. Suas cartas revelam a sua angústia de espírito ao ver os horrores do povo africano massacrado e arrebatado dos seus lares, con­duzido como gado para ser vendido no mercado. De um lu­gar alto onde subiu, contou dezessete aldeias em chamas, incendiadas por esses nefandos mercadores de seres huma­nos.Prometera à sua esposa reunir-se com a família depois de dois anos, mas passaram-se quatro anos e meio antes que ela recebesse qualquer notícia dele!

Por fim, após uma ausência de dezessete anos da pá­tria, regressou à Inglaterra. Voltou à civilização e à sua família como quem volta da morte. Antes de desembarcar, soube que seu querido pai falecera. Em toda a história de Livingstone, não se conta um acontecimento mais como­vente do que o seu encontro com a esposa e filhos. Na In­glaterra, foi aclamado e honrado como heróico descobridor e grande benfeitor da humanidade. Os diários publicavam os seus atos de bravura. As multidões afluíam para ouvi-lo contar a sua história. "O doutor Livingstone era muito hu­milde... Temia passear nas ruas, receando ser atropelado pelas massas. Certo dia, na Regent Street, em Londres, foi apertado por tão grande multidão, que só com grande difi­culdade conseguiu refugiar-se num táxi. Pela mesma razão evitava ir aos cultos. Certa vez, desejoso de assistir ao cul­to, meu pai persuadiu-o a ocupar um assento debaixo da galeria, em um lugar não visível ao auditório. Mas foi des­coberto e o povo passou por cima dos bancos para cercá-lo e apertar-lhe a mão".

Uma das muitas coisas que levou a efeito, enquanto na Inglaterra, foi a de escrever seu livro: Viagens Missioná­rias, obra que alcançou enorme circulação e produziu mais interesse na questão africana do que qualquer movimento anterior.

Em março de 1858, com a idade de 46 anos, Livingsto­ne, acompanhado de sua esposa e filho mais novo, Osval­do, embarcou novamente para a África. Deixando os dois na casa do sogro, o missionário Moffatt, Livingstone conti­nuou as suas viagens. No ano seguinte, descobriu o lago Niassa. Recebeu, também, uma carta da esposa, da casa de seus pais em Curumã, informando-o do nascimento de mais uma filha. A menina já estava há quase um ano no mundo quando o pai soube do seu nascimento.

As explorações dos rios Zambeze, Tete e Shire e do lago Niassa, foram feitas com o propósito de saber quais os pon­tos mais estratégicos para a evangelização, e missionários foram enviados da Inglaterra para ocuparem esses lugares.Em 1862 a esposa reuniu-se a ele novamente, e acom­panhava-o nas viagens, mas três meses depois faleceu, vítima da febre e foi enterrada em uma encosta verdejante na margem do rio Zambeze. Np seu diário, Livingstone as­sim escreveu: "Chorei-a porque merece as minhas lágri­mas. Amei-a ao nos casarmos, e quanto mais tempo vivía­mos juntos, tanto mais a amava. Que Deus tenha piedade dos filhos..."

Um dos maiores obstáculos que Livingstone enfrentou na obra missionária foi o terror dos indígenas ao verem um rosto de homem branco. Aldeias inteiras em ruínas; fugiti­vos escondendo-se nos campos de alto capim, sem nada te­rem para comer; centenas de esqueletos e cadáveres inse­pultos; comboios de homens e mulheres algemados aos troncos, seguros pelo pescoço, eram conduzidos aos portos - É difícil concebermos a magnitude da desolação criada por homens cruéis que participavam do tráfico de escra­vos.

Esses homens tentavam, também, com ódio cruel e arte diabólica, terminar com a obra de Livingstone. Final­mente conseguiram, por meio da política do seu país, indu­zir a Inglaterra a chamá-lo de volta à sua terra. Foi assim que Livingstone chegou de novo à sua pátria depois de uma ausência de cerca de oito anos.

Os crentes e amigos na Inglaterra, animados pela visão de Livingstone, começaram a orar e enviar-lhe dinheiro para continuar sua obra no continente negro. O nosso herói desembarcou pela terceira e última vez na África, em Zanzibar.

Na expedição que iniciou em Zanzibar, descobriu os la­gos Tanganyka (1867), Moero (1867) e Bangueolo (1868). Passou cinco longos anos explorando as bacias desses la­gos. A oração e a Palavra de Deus foram o seu sustento es­piritual durante esses anos de provações, que sofria por parte dos negociantes de escravos.

Resolveu, então, fazer o possível para descobrir as nas­centes do rio Nilo e solver um problema que durante mi­lhares de anos havia zombado dos geógrafos. Sabia que se descobrisse as nascentes do famoso Nilo, o mundo todo lhe daria ouvidos acerca da chaga aberta da África, com o comércio de escravos. É interessante conhecer o que ele es­creveu: "O mundo acha que busco fama, porém eu tenho uma regra, isto é, não leio coisa alguma sobre os elogios que me fazem". Ele sabia que, ao findar a escravatura, o continente se abriria para deixar entrar o Evangelho.

Durante os longos intervalos entre os períodos em que suas cartas eram recebidas na Inglaterra, vindas do cora­ção da África, circularam boatos de que Livingstone mor­rera. Não só os homens que traficavam com escravos que­riam matá-lo, mas também muitos dos próprios indígenas, por não acreditarem existir um homem branco que fosse amigo de coração. Ele mesmo contou muitos fatos relacio­nados com as ciladas na terra do Maniuema para o mata­rem. Nesse lugar, ele escreveu no seu diário: "Li toda a Bíblia quatro vezes, enquanto estive em Maniuema". Na solidão achou grande conforto nas Escrituras.

Reconhecia sempre a possibilidade de perecer nas mãos dos inimigos, mas sempre respondia à insistência dos ami­gos com esta pergunta: - "Não pode o amor de Cristo cons­tranger o missionário a ir onde a traficância leva o merca­dor de escravos?"

Pela primeira vez, nos milhares de léguas que cami­nhou, os pés do pioneiro falharam. Obrigado a ficar algum tempo em uma cabana, todos os seus companheiros o abandonaram, à exceção de três que ficaram com ele.

Por fim, chegou a Ujiji, reduzido a pele e ossos, por cau­sa da grave doença que sofrera em Maniuema. Não tinha recebido cartas havia dois anos e esperava receber também as provisões que enviara para lá. Contudo, as cartas não haviam chegado. Com o corpo enfraquecido, e destituído de roupas e alimentos, veio a saber que lhe tinham rouba­do tudo. Nessa situação, ele escreveu: "Na minha pobreza senti-me como o homem que, descendo de Jerusalém a Je­ricó, caiu nas mãos de ladrões. Não tinha esperança de que sacerdotes, levitas ou o bom samaritano viesse em meu so­corro. Entretanto, quando minha alma se achava mais abatida, o bom samaritano já estava bem perto de mim!"

O "bom samaritano" era Henrique Stanley, enviado pelo New York Herald, à insistência de muitos milhares de leitores desse jornal, para saber ao certo se Livingstone ainda vivia, ou, no caso de ter morrido, para trazer seu cor­po.

Stanley passou o inverno com Livingstone. Mas este se recusou a ceder à insistência daquele de voltar à Inglater­ra. Livingstone podia voltar e descansar entre amigos, com todo o conforto, mas preferiu ficar e realizar seu anelo de abrir o continente africano ao Evangelho.

A sua última viagem foi feita para explorar o Luapula, a fim de verificar se esse rio era a nascente do Nilo ou do Congo. Nessa região chovia incessantemente. Livingstone sofria dores atrozes; dia após dia tornava-se-lhe mais e mais difícil caminhar. Foi então carregado, pela primeira vez, pelos fiéis companheiros: Susi, Chuman e Jacó Wainwright, todos indígenas.

No seu diário, as últimas notas que escreveu dizem: "Cansadíssimo, fico... Recuperada a saúde... Estamos nas margens do Mililamo".

Chegaram à aldeia de Chitambo, em Ilala onde Susi fez uma cabana para ele. Nessa cabana, a 1º de maio de 1873, fiel Susi achou seu bondoso mestre de joelhos, ao lado da cama - morto. Orou enquanto viveu e partiu deste mundo orando!

Os dois fiéis companheiros, Susi e Chuman, enterra­ram o coração de Livingstone abaixo de uma árvore em Chitambo, secaram e embalsamaram o corpo, e o levaram até a costa - viagem que durou alguns meses, pelo territó­rio de várias tribos hostis. O sacrifício desses valentes fi­lhos da África, sem terem qualquer propósito de remunera­ção, não será esquecido por Deus, nem pelo mundo.

O corpo, depois de chegar em Zanzibar, foi transporta­do para a Inglaterra, onde foi sepultado na Abadia de Westminster, entre os monumentos dos reis e heróis da­quela nação. Não havia dúvida quanto ao corpo de Li­vingstone; era fácil de identificar: o osso de cima do braço esquerdo tinha distintamente as marcas dos dentes do leão que o atacara.

Entre os que assistiram ao enterro, estavam seus filhos e o velho missionário Roberto Moffatt, pai da sua querida esposa. A multidão consistia de povo humilde, que o ama­va e dos grandes, que o honravam e respeitavam.Conta-se que havia, entre as multidões que permane­ciam nas calçadas das ruas de Londres no dia em que o cortejo, com o corpo de Davi Livingstone, passava, um ve­lho chorando amargamente. Ao lhe perguntarem por que chorava, respondeu: - "É porque Davizinho e eu nascemos na mesma aldeia, cursamos o mesmo colégio e assistimos a mesma Escola Dominical, trabalhávamos na mesma má­quina de fiar. Mas Davizinho foi por aquele caminho, eu por este. Agora ele é honrado pela nação, enquanto eu sou desprezado, desconhecido e desonrado. O único futuro para mim é o enterro de beberrão".

Não é somente o ambiente, mas a escolha na mocidade é que determina o destino, não só aqui no mundo, mas para toda a eternidade.

Quando Livingstone falou aos alunos da Universidade de Cambridge, em 1857, disse: "Por minha parte, nunca cesso de me regozijar por Deus ter-me apontado para tal ofício. O povo fala do sacrifício de eu passar tão grande parte da vida na África. - Será sacrifício pagar uma peque­na parte da dívida, dessa dívida que nunca poderemos li­quidar, do que devemos ao nosso Deus? É sacrifício aquilo que traz a bendita recompensa de saúde, o conhecimento de praticar o bem, a paz de espírito e a viva esperança de um glorioso destino? Longe esteja tal idéia! Digo com ênfa­se: Não é sacrifício... Nunca fiz sacrifício. Não devemos fa­lar dos nossos sacrifícios, ao nos lembrarmos do grande sa­crifício que fez Aquele que desceu do trono de seu Pai, nas alturas, para se entregar por nós".

Se Livingstone não tivesse adoecido, teria descoberto as nascentes do Nilo. Durante os trinta anos que passou na África, nunca se esqueceu do seu alvo principal que era le­var Cristo aos povos desse escuro continente. Todas as via­gens que realizou foram viagens missionárias.

Gravadas no seu túmulo podem ser lidas estas pala­vras: "O coração de Livingstone jaz na África, seu corpo descansa na Inglaterra, mas sua influência continua".

Gravados para sempre na história da Igreja de Cristo estão os grandes êxitos na África durante um período demais de 75 anos depois de sua morte, êxitos inspirados, em grande parte, pelas orações e persistência desse eminente servo de Deus, que foi fiel até a morte.

(extraido do livro hérois da fé)